Acho que foi em algum dos acordes de
Grendel, do
Marillion, que eu ouvia no headphone enquanto falava sobre quem eu um dia fui, que eu entrei -- ou caí através -- do buraco do coelho. De repente, eu estava lá de novo, naquele carro. Via a mata passando pela janela. A Mata Atlântica, ou o que eu acreditava ser a Mata Atlântica, no caminho de Rio das Ostras para Búzios (ou o que eu acreditava ser Búzios). De repente eles estavam lá também, now and then. Aqueles homens amarronzados de olhos curiosos me olhando das árvores, aquelas pequenas fadas bonitas, aquela vida feérica toda se mostrando para o garoto de 12 anos que se acreditava mais parte daquilo do que de qualquer outra coisa. Mas não era a lembrança, ou a cena, que me impressionava. Eu me lembrava claramente desta cena o tempo todo. Era o sentimento. Eu consegui reencontrar o sentimento de ser eu naquele momento, e isso foi mais do que assombroso... foi numinoso!
Mais do que realmente acreditar, eu realmente confiava na magia naqueles tempos.
Confiava mais na existência de um mundo além do visível, de uma lei natural superior às limitadas visões da natureza por parte do homem moderno, do que confiava em qualquer outra coisa, ou mesmo em mim. Eu era uma criança então. Mas era uma criança mágica. E eu sabia o que aquelas fadas e duendes e pequeninos e dançarinos-da-madeira estavam dizendo para mim. Eu sabia exatamente o que eles queriam dizer quando olhavam para mim com aqueles muitos olhos, de muitas cores e formatos, tão curiosos e assombrados quanto eu. Eles queriam dizer "que diabos você tá fazendo aí, colega?". Eles também queriam dizer "Tá. Já que você está aí, boa sorte, viu?".
Não era
como se eu fosse parte daquilo. Eu
era parte daquilo -- daquele outro mundo -- assim como ele era parte de mim. E ele fazia sentido. Era um mundo de presságios, de sinais, de sentidos e significados velados e de ligações misteriosas entre todas as coisas. Era um mundo onde tudo fazia sentido, embora quase tudo fosse envolto em mistério. Era um mundo que era mais estranho e ao mesmo tempo mais familiar para mim do que este mundo dos homens e das máquinas aqui. Era o meu mundo, e eu estava em casa nele. E daquele mundo vinham as certezas, e a força, para continuar vivendo.
Mas os anos se passaram depois daqueles dias, depois daquele e de muitos outros encontros com meus irmão "do outro lado". Eu tive que aprender a viver com as pessoas, ou assim acreditei que deveria fazer, e aquilo de mim que pertencia ao Mundo Encantado começou a se perder. "É a abdicação da infância", diria você. É tudo muito simples para aqueles que foram crianças. Mas eu não era uma simplesmente uma criança. Eu era um duende aprisionado em um mundo estranho, e que estava se perdendo de sua própria natureza. Não sintam pena de mim. Ninguém sabe como eu me sentí, nem o que parecia estar se perdendo naqueles anos. Nem mesmo eu posso dizer que sei, só sabia que sintia a falta daquilo que nem sabia mais ao certo o que era, até hoje.
Levei muito tempo para conseguir entender quem eu era, e quem eu sou. Nunca me sentia realmente em casa em lugar algum. Nunca me sentia realmente compreendido por ninguém. A sensação de eterno estranhamento, eterna alienação, me perseguia. Mesmo depois de aprender as artes da dissimulação e da adaptação, artes estas bem humanas -- bem diferentes das ilusões e do glamour das fadas -- eu continuava me sentindo inadequado. Quando descobri, ou redescobri, a escrita e o contar de histórias, conheci uma nova dimensão de alívio e dor. Alívio, pois descobri na arte uma nobre ressonância da magia da Terra Encantada.
Eu podia novamente criar mundos, e eles podiam ser do jeito que eu sei que os mundos são, e não do jeito que eles -- os gentes -- achavam que ele deveria ser. Pude novamente explorar meus mundos em busca de minhas histórias. Mas encontrei também uma nova dimensão de dor e angústia, quando descobrí que mesmo que eu contasse as mais significativas histórias, nunca conseguiria passar para o papel aquilo que eu enxergava. Deparei-me não com os limites fantásticos da arte, mas com meus limites humanos enquanto escritor.
A Terra Encantada estava lá dentro de mim o tempo todo, embora com o tempo eu viesse perdendo mais e mais a minha capacidade de entendê-la, enxergá-la, adentrá-la. Entendi que não interessa quantas histórias eu contasse, nunca conseguiria chegar sequer à sombra do encanto daquelas Terras. Nunca alcançaria a beleza ou a magia da minha Alriada. Isso me fez desistir da escrita e da poesia por muito tempo. Novamente, me perdia de mim. Comecei novamente a perder as esperanças.
As alegrias deste mundo não são poucas nem pequenas. As diversões, as maravilhas, os sutis encantos das gentes são infindos. O horror e o absurdo das gentes também é um reflexo à altura dos horrores e perigos da Terra Encantada. Mas neste mundo de beleza e horror, eu sou um estrangeiro. Encanto-me, caminho por ele, tento construir nele uma casa, encontrar um espaço, mas sou eternamente um estrangeiro. Tornei-me também um estrangeiro de mim, e isso foi o mais triste. Perdido no reino do meio, na estrada cinza entre a Terra Encantada e a Terra da Gente, eu virei um alguém de lugar nenhum -- algo próximo a um não alguém. É claro que eu sabia fingir muito bem. Quase era possível que acreditassem, mesmo olhando bem de perto, que eu era mesmo o que parecia ser -- um Gente -- e que tudo estava bem. Até eu acreditava nisso, e propositalmente ou não, esquecia que tudo aquilo era uma mentira contada para esconder um vazio que eu não sabia como remediar. Mas era uma mentira. Eu não sou um Gente. Eu sou um filho do Outro Lado, e cedo ou tarde isso sempre vinha à tona quando me deparava com a minha inabilidade essencial para lidar com certas coisas do aqui.
Mas o tempo passou, e vez por outra os lampejos da outra terra, não mais vistos mas ainda assim sentidos, continuavam a me visitar. Vez por outra era tomado de inspiração e magia, e voltava a escrever algo. Mas o Este Mundo, ou minha inabilidade de viver nele, acabavam me afastando desta luz sublime, ou me massacrando a ponto de perder novamente os sentidos e a sensibilidade. Alternei períodos de mergulho negatório em quaisquer prazeres que este mundo pudesse me trazer e períodos de contrita auto-punição por estar perdido de mim mesmo. Em ambos, me afastava mais e mais da essência do Outro Mundo. A Terra Encantada pode ser intoxicante, mas suas intoxicações são de uma ordem muito mais sutil -- embora não menos poderosa -- do que as intoxicações do Aqui. Na maior parte das vezes as intoxicações daqui só nos afastam das terras de Lá. Ainda, a contrição e a disciplina são para as fadas e seres encantados como o sal pode ser para os sapos (ou, ao menos, para os sapos encantados). Elas nos dissolvem. Apesar, então, de quaisquer lampejos e momentos luminosos, continuava a me perder mais e mais. Por vezes me desesperava, acreditando que todos os passos que eu pudesse dar seriam, fatalmente, na direção contrária ao Caminho da Terra Encantada, e rumo à morte que é pior do que a morte do corpo -- a morte do espírito.
Vistas de fora, estas dores parecem-se um bocado com as dores dos Gentes. Mas, acreditem-me, não o são, como não são cogumelos de verdade aqueles que ladeiam aquelas árvores. Tudo de natureza feérica é dotado de tal sutileza que, aos olhos dos Gentes, passam por outras coisas que, acreditem-me, não são realmente. É particularmente grave quando, com a vista anuviada como a dos Gentes, os filhos da Terra Encantada começam a enxergar cogumelos onde há pequeninos, e dores humanas onde há a destruidora angústia de uma fada exilada. E foi o que fiz. Durante tantos anos, depois que fechei os olhos para tudo que era, eu realmente acreditei que todas estas dores eram apenas dores como as de todas as outras pessoas. Não me admira que nunca as tenha conseguido solucionar realmente. Não me admira que eu nunca tenha conseguido realmente entender quem eu sou, ou por quê sou como sou, quando fechava os olhos para a chave desta resposta. Pior do que ser um duende se perdendo da Terra Encantada era ser um Duende que achava que era Gente.
Mas já basta de falar destas dores. O desabafo já se extendeu mais do que devia, e tomou um rumo que não era aquele que eu planejava quando comecei a escrever estas linhas. Vamos parar de lamentar, e falar de redenção. De um tempo para cá (aproximadamente duas horas, para ser humanamente exato) comecei a entender, ou melhor, "realizar" (pois entender é coisa que se faz com a mente, e a mente é coisa de Gente), que tanto a Terra Encantada quanto a essência Mágica de seus filhos está sempre lá, mesmo que você não a veja, mesmo que você não a encontre. Basta você permitir que ela seja, e ela aparecerá. E foi assim que comecei a realizar também que quando não tento ser gente nem fada, nem isso nem aquilo, e quando me liberto de qualquer tentativa de ser, acabo sendo aquilo que sou. Parece complicado? É porque assim como não há palavras para descrever com propriedade as belezas e horrores da Terra Encantada, também não há palavras para explicar algumas das mais simples verdades do universo (que é um só, para lá e para cá, e ao mesmo tempo infinitos uns).
E assim, realizando uma verdade simples e inexprimível, o duende pode enfim terminar o texto que começou sem saber onde o iria levar, e dormir em paz.
Ao menos agora vocês sabem um pouco da minha história. Mas esta é apenas uma das formas de contá-la -- a minha -- e vocês não precisam acreditar nela. No fim das contas, sou apenas uma bela ilusão para vocês. Assim é a vida paradoxal das fadas.
E este é um mundo realmente muito estranho...
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