7 de fev. de 2007

uma tal Clarice.

Tem gente que usa a lígua de outra forma. Uma forma mais profunda, ritmada, ao mesmo tempo orquestrada e caótica. Uma forma superior, enfim. E dá um tesão absurdo... de ler. Clarice Lispector é uma destas pessoas. Com seu método ou não-método de narrar, de expor a veia aberta de suas observações tão cotidianas e ao mesmo tempo tão excepcionais, Clarice nos dá uma aula de campo de como contar histórias, enfiando o dedo, ou a língua, lá no fundo de cada cavidade do existir.

Andei lendo estes dias um de seus livros. Onde estivestes de noite, uma coletânea de contos desiguais mas todos com sua marca -- a absurda profundidade, intimidade. Por vezes me exaspero, como menino, frente às peripécias que esta mulher de olhos e olhar tão fortes faz com a língua e com o narrar. Me assombro, tento aprender, desisto. Só Clarice pode escrever daquela forma impunemente. Só Clarice, ela mesma, pode ir tão fundo. A mim resta absorver o que meus poucos anos e pouca atenção permitirem, e contar o que tiver para contar, do jeito que eu souber. Só ela sabe fazê-lo do jeito dela.

Ninguém é como Clarice quande escreve. Podem escrever de outras formas, mas a dela é profunda e tragicamente só dela. Clarice é uma sacerdotiza da angústia e da redenção, profunda em sua humanidade e em sua honestidade silente. Há quem a compare com Kafka. Pobre Kafka. Pobre Clarice. Pobre tradutor, que teve a infeliz idéia de que se comparam assim as prosas e as pessoas. Só quem lê Clarice sabe o que é. Só Clarice sabia quem era ela mesma. A nós, resta ler Clarice, e aprender... ou não.


(uma versão revisada e ampliada deste post foi publicada no Overmundo)

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