22 de fev. de 2007

... as he were of faierie

"...His croket kembd and thereon set
A Nouche with a chapelet,
Or elles one of grene leves
Which late com out of the greves,
Al for he sholde seme freissh;

And thus he loketh on the fleissh,
Riht as an hauk which hath a sihte
Upon the foul ther he schal lihte,
And as he were of faierie
He scheweth him tofore here yhe..."

Trecho de uma poesia de John Gower (se não me engano, Confessio Amantis) que, segundo Tolkien em seu On Fairy-Stories (in Tree and Leaf, 1947), seria o primeiro registro escrito da palavra Fairy, ou Faërie. Mas estas duas palavras não querem dizer a mesma coisa, no fim das contas. Faërie é um lugar, traduzido pelo próprio Tolkien (que, lembremos, foi um dos maiores estudiosos das línguas anglo-saxônicas do século XX) como Fair Kingdom, ou o "Belo Reino" (A própria palavra Fair -- belo -- teria em sua origem o Faierie médio-inglês), ou Enchanted Realm, ou "Reino Encantado". Por sua vez Fairy poderia ser traduzido, a princípio, como a palavra para designar os habitantes, ou um tipo de habitantes, deste reino. Parece natural que a primeira referência ao lugar tenha surgido na língua inglesa antes da referência a seus habitantes, mas muitos tradutores confundem o penúltimo verso da poesia, traduzindo-o como "...as he were a fairy" ("como se ele fosse uma fada") mas não foi isso que Gower escreveu. O original "...as he were of faierie" se traduz literalmente como "...as he were of faërie" ("como se ele fosse de faërie/da terra encantada"), até porque a frase ficaria sem nexo ao ser traduzida como "...as he were of fairy" ("como se ele fosse de fada"). Logo, em seu primeiro registro escrito, a palavra não se refere a um ser ou pessoa, mas a um lugar -- O Lugar.

Pequenas (ou enormes) confusões como estas fizeram com que a palavra Faërie fosse quase completamente eclipsada na língua inglesa pela sua derivada Fairy, sendo inclusive confundida muitas vezes com um sinônimo ou grafia alternativa desta. Desta terrível forma, os seres encantados foram simbolicamente desprovidos de sua origem (e portanto de sua essência, e então de seu poder e magia) e confinados em um sem-lugar obscuro do mundo (ou pior, apenas do imaginário) do Homem. Até mesmo na wikipedia este engano é cometido, o que não chega a ser uma surpresa, infelizmente.

Não são as fadas ou seres encantados, mas é a Terra Encantada, que define essencialmente os Contos de Fadas (fairytales). Ou, melhor ainda, deveríamos sempre chamá-los de "Faërietales" (Histórias da Mundo Encantado), mas que não fazemos pois simplesmente não sabemos, muitas vezes, que esta diferença (e que esta terra) existe. Ainda segundo Tolkien (e eu concordo totalmente com ele), o que define as Histórias de Fadas ou Histórias do Reino Encantado é a Magia. Magia esta que é inerente primeiro à Terra Encantada, onde faz parte da natureza, e por conseguinte de seus habitantes, por serem parte desta natureza. É desta forma que, ao se perder a palavra (e portanto até mesmo a idéia essencial) da Terra Encantada, privamos os filhos desta terra de sua magia, ao transformá-los em uma parte misteriosa e alienígena de nosso próprio mundo (o qual também privamos dia a dia de toda a magia).

Na língua portuguesa, a questão é ainda mais séria. Não há, a princípio, uma palavra em nossa língua para designar a Terra Encantada. Eu disse a princípio, pois a palavra existe, mas vocês não acreditariam se eu vos dissesse qual é (e poucos sequer se lembram que ela tem este significado, embora nós a falemos com muita frequência). De qualquer forma, até mesmo o Fairy do idioma inglês recebe uma ambígua e insuficiente tradução como Fada -- uma palavra que mistura em sua construção uma série de referências que não a equivalem exatamente ao Fairy inglês e muito menos ao ylfe ou ao daóine-sidhe do velho mundo. Se os Fairy desterrados da língua inglesa tem ao menos o direito a ter dois sexos, as fadas são condenadas a ter apenas o sexo feminino e são ainda mais gravemente limitadas em seu escopo de significados e formas. Já a palavra para designar as "fadas do sexo masculino" é ainda mais estranha e inadequada (sim... estou criticando aquele que é meu nome, mas apenas como tradução correta para o Fairy masculino). Vejo isso com um certo assombro, pois as terras ibéricas eram ricas em... errr... fadas e duendes no seu imaginário, simbolismo e mitologia.

A língua e o pensar, o imaginar, andam juntos. Temos, portanto, que tentar recuperar não apenas as palavras certas para falar do Reino Encantando e do povo sutil e mágico que vive e vem de lá, como também reencontrar seus significados. Os filhos de Faërie, a Terra Encantada, agradecem.

Quando abrimos mão das palavras encantadas,
perdemos também os poderes da Subcriação e da Imaginação.
Pensem nisso.




p.s. para aqueles que ainda não sabem, algum dia conto qual é, segundo meus estudos, a única palavra sobrevivente na língua portuguesa moderna para designar o Reino Encantado. (curiosos? procurem em Nansen, In Northern Mists, ii, 223-30. dica de rodapé do próprio Tolkien).

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