31 de jul. de 2007

mais um fragmento de um velho conto...

Um convite para "fornecer" um conto brasiliense para servir de base para um roteiro de um curta amador me fez revirar minhas gavetas virtuais. Embora a minha interlocutora já estivesse inclinada a levar a "mercadoria fácil" do "Melhores Venenos", ainda insistí em regatear sobre alguns velhos contos.

No meio da revirada de gavetas para buscar mais opções, encontrei meu velho, brega e meio surreal "Princesa à Janela" (que, sim, tem o nome MUITO parecido com o "A Moça Acenando na Janela", a ponto de eu misturar os nomes por vezes, mas que pertence a outra época, sendo um dos contos mais velhos do primeiro projeto de livro).

Abaixo, um trecho da velharia doce que nem mel:

"Acompanhando com os olhos o pequeno ponto de luz do toco de cigarro que cai, Lorena tenta se abstrair do escuro de seu quarto e do vazio que sempre sentiu. A vida nunca foi difícil para ela, mas isto não a fez melhor. O pequeno vagalume laranja se choca com o asfalto lá embaixo, reproduzindo-se em muitos outros pontos de luz que morrem juntos.

Em meio às sombras da quadra parada dois olhos se voltam para cima. Lorena, perdida em um suspiro por mais uma noite perdida, encontra outros olhos perdidos na solidão da noite. Por alguns segundos não há muito mais o que se fazer senão olhar. O homem na calçada e a menina à janela, duas solidões sem par. As cinzas do cigarro na calçada soltam sua última linha de fumaça, o homem volta a olhar para frente e caminhar. Lorena fecha a janela para dormir. Os dois continuam sozinhos."

Gosto deste trecho. Pena que nem todo o conto é bacana deste jeito. Quem sabe um dia eu o tire da gaveta -- quem sabe até agora -- para torná-lo algo publicável?

A vida é cheia de surpresas. Nem mesmo eu sei de tudo que vou decidir fazer...

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30 de jul. de 2007

Aventuras do xará em seu doce exílio parisiense...

Para escritores que, como eu, quando estão frente à tela branca tentando escrever fazem de tudo -- tudo! -- menos escrever, e para aqueles que simplesmente gostam de ler umas boas aventuras e desventuras de um brasileiro em um lugar inóspito, recomendo o blogue Chéri à Paris do caro xará expatriado Daniel Cariello.

Lá você descobre por quê se deve ter um celular quando se vai ao Louvre na terça-feira, as habilidades e inabilidades dos bombeiros e policiais parisienses frente a uma goteira, por quê você não deve conversar com barbeiros parisienses quando eles estiverem cortando seus cabelos e os perigos de se perguntar se "a baguete é do dia" nas padarias francesas. Coisa fina do brasileirinho na terra do Galo!

Pronto, agora que já fiz uma digna homenagem ao blogue do xará, vamos ver se escrevo alguma coisa que preste...

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Bufo.

Começa assim...

"Você fez de mim um sátiro (e um glutão), por isso gostaria de permanecer agarrado às suas costas, como Bufo, e, como ele, poderia ter a minha perna carbonizada sem perder esta obsessão."


Estas primeiras palavras de Bufo e Spallanzani, de Rubem Fonseca, nunca me saem da cabeça. Será sua força, sua simplicidade ou seu sentido?

os Deuses sabem.

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Virtude da não-palavra

É inestimável o valor daquilo que se pode dizer sem falar palavra alguma.

É incrível a balbúrdia que se pode fazer quando se tenta transformar em palavras aquilo que é indizível.

É encantadora a poesia que se faz em silêncio.


Agora cale a boca.

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26 de jul. de 2007

A imortalidade é um estado de espírito -- conto.

Juntei algumas imagens e algumas idéias, escrevi sem compromisso com nada, e saiu mais um conto. Não me importa seu sentido ou sua moral. Ele é apenas o que é. É a história de um cara que descobre algumas coisas sobre a vida e a morte. Nada demais. Apenas as verdades dele. Seja como for, é uma história.

Espero que gostem.
O conto se chama...

A imortalidade é um estado de espírito.

"Elizabeth sempre dissera que aquilo iria acabar por matá-lo. Talvez ela tivesse um prazer mórbido -- daquele que se escondia bem por trás de sua doçura -- se soubesse agora que tinha razão. Sentado em um banco próximo a seu carro, logo perto do hospital, Jonas segurava o papel meio amassado dos exames nas mãos descaídas sobre o colo. Elizabeth agora tinha razão. Todos que haviam dito que ele ainda iria morrer daquilo tinham razão. Como se não fosse óbvio se ter razão quando se vaticina a mortalidade de alguém, aventando a letalidade de riscos evidentes. É claro que o cigarro mata, seu bando de imbecis!

Estava mesmo morrendo, então. Os exames detectaram o que outros exames confirmaram e o médico interpretara com cara de falsa piedade: Jonas estava mesmo com câncer de pulmão. É claro que a notícia caiu sobre ele como uma pedra. Rir na cara da morte não tem muita graça. Não logo de cara. Então, ele simplesmente tentou não chorar na frente do médico. Não conseguiu se segurar depois que saiu do hospital. Tinha pena de si mesmo, achava-se muito jovem para morrer. Mas isso também era absurdo. Não havia motivo para ter pena de si mesmo. Sua vida havia sido... havia sido?... sua vida era muito boa, e ele havia feito o que bem quisera dela. Todo mundo acha-se jovem demais ou velho demais para morrer. Os poucos que se salvam não pensam na morte, ou em raros casos aprenderam a não se importar com ela. Jonas não sabia ao certo o que pensar agora. Mas ao menos havia parado de chorar.

Ficou pensando na vida enquanto a brisa balançava as árvores e o dia esquentava cada vez mais. As pessoas passavam, a maioria delas com caras tristes, para um lado e para o outro. É dificil ver rostos alegres perto de um hospital. Talvez os hospitais façam com que as pessoas sintam-se ainda piores a respeito de si mesmas, ou de estar doente. Talvez os hospitais façam com que as pessoas sintam-se ainda piores de morrer, já que tem tanta gente lá dentro tentando viver. Médicos e hospitais faziam a idéia de arriscar a própria vida, ou de morrer, soar quase obcena. Jonas resolveu ir embora dali. Já que sabia que estava morrendo, não precisava mais de nada daquilo.

Demorou um pouco para ter firmeza nos braços para dirigir -- ainda estava abalado. Mas por fim conseguiu dar marcha-ré no carro e ir para um bar. Para onde mais iria? Uma boa parte da rede de sentidos e de práticas cotidianas de Jonas estava irremediavelmente avariada pela descoberta daquilo que o matava. Não conseguiria voltar para o trabalho. Não conseguiu também ligar para ninguém para dar a notícia, embora muitos de seus amigos estivessem esperando ansiosamente pelo resultado negativo dos testes. É claro que não havia pressa agora, que não havia mais boas notícias a dar. Não haveria festejo. Eram apenas as coisas como eram. Jonas sentou-se no bar e pediu uma cerveja. O olhar prestativo do garçom parecia ter um leve traço de pena, e isso o incomodou. Convenceu-se de que isso era absurdo. É claro que o garçom não sabia de nada. Quem ainda estava com pena de si mesmo era Jonas. Isso o irritou.

Tirou o maço de cigarros do bolso e levou um deles à boca. Paralizou o próprio movimento no momento de acendê-lo. Não era isso, afinal, que o estava matando? Colocou o cigarro de volta na mesa, branco e aparentemente inócuo, até mesmo frágil, e ficou paralizado olhando para ele até a chegada da cerveja. Encheu o copo e bebeu em grandes goladas. Estava gostosa, gelada e amigável naquele dia quente. Quando voltou a encher o copo e tomar mais algumas grandes goladas, já não se sentia mais tão doente. Na verdade, naquele momento não sentia nenhum sinal de doença em si mesmo. Estava sentado em um bar, tomando sua cerveja, sem nenhuma preocupação na cabeça além da idéia de que iria morrer -- o que tirava dele qualquer preocupação com o futuro. Naquele momento, não ter um futuro era libertador. Deixava-o livre para beber sua cerveja e se preocupar apenas eventualmente com o fato de que estava prestes a morrer.

Mas estava mesmo prestes a morrer? Não sabia. Algumas pessoas vivem durante anos com um câncer devorando-as lentamente, por vezes imperceptivelmente. Existia a quimioterapia e os outros tratamentos. Ele não precisava estar exatamente morrendo agora. E mesmo que não fizesse nada disso, não fazia idéia de quanto tempo aquele câncer levaria para matá-lo. Sua morte iminente começava a entrar em cheque em sua cabeça. Não sabia se sentia-se mais confortável assim. Pensamentos sobre o futuro, sobre o que faria da sua vida se tivesse seis meses, um ano, três anos de vida, começaram a perpassar sua cabeça. Aquilo parecia ser pior do que morrer. Escolher o que fazer com o tempo que o restava parecia ainda mais angustiante. Quase sentia vontade de que não o restasse tempo nenhum, para que pudesse viver só um dia depois do outro esperando pelo dia em que não se deitaria para dormir, ou que não levantaria ao acordar. Estava tudo ficando muito confuso. Encheu mais um copo de cerveja e o virou. Depois encheu o copo de novo, e tornou a virá-lo garganta abaixo. A cerveja gelou sua garganta e o afastou de seus pensamentos. Pediu mais uma garrafa.

Começou a pensar em todas as pessoas que havia conhecido, aquelas que ainda estavam em sua vida e aquelas que haviam desaparecido. Pensou que nunca mais veria algumas delas. Isso o deu uma pontada de tristeza, até que percebeu que o pensamento também era absurdo. Poderia viver 60 anos mais e não voltar a encontrar muitas pessoas que haviam desaparecido de sua vida. E elas nunca fizeram tanta falta assim até hoje. Por quê fariam agora? Este parecia ser apenas mais um dos pensamentos absurdos e estúpidos que, de alguma forma, se insinuam na sua cabeça quando você descobre que está prestes a morrer. Jonas riu de si mesmo. Voltou a olhar para o cigarro. Ainda não teve coragem de acendê-lo, mas ao menos parecia mais amistoso ali onde estava. Estava cansado de todos estes pensamentos estúpidos. Sentia-se ao mesmo tempo pesado e leve agora. Sentia-se ao mesmo tempo revitalizado e moribundo. Não conseguiu encontrar outro motivo para acreditar-se moribundo além dos papéis que assim diziam, guardados em seu bolso. Então, sentiu-se cheio de vida. Quando a cerveja chegou, levantou um brinde para a pilastra e bebeu também de uma vez.

Será que morrer era tão ruim assim? Não sabia. Ninguém sabia disso ao certo, mas agora ele sabia que iria descobrir em breve. Sentiu medo da dor, mas lembrou-se de que haviam analgésicos legais e proibidos que poderiam afastar qualquer dor. Fez anotações mentais sobre quem poderia arranjar um pouco de heroína, ou algumas doses boas de morfina, para si. O pensamento de que a dor, toda a dor, era evitável deu à idéia de morrer contornos mais macios. Tirou o celular do bolso. Sentia vontade de conversar com alguém. Não sobre sua morte, que ainda não era fato, ou do câncer que era pouco mais do que uma abstração por trás de sua ligeira dificuldade de respirar. Queria conversar sobre a vida, sobre as mesmas coisas de sempre. Naquele momento percebeu que a única diferença que aquela coisa estranha que eventualmente o devoraria por dentro fazia em sua vida se projetava sobre o futuro. E o futuro era, sempre foi, desconhecido. A gente só acredita que o conhece, mas não sabe de nada. Se um câncer vai surgir ou não, se os freios do carro vão falhar ou se o ônibus vai capotar com você dentro. Você nunca sabe se vai morrer no dia seguinte, ou se vai ser feliz ou triste. Você apenas acredita. E então, alguém que estudou 10 anos para saber fazer isso te diz que tem algo te devorando por dentro, e então você está morrendo. Mas não estamos todos? A vida cobra seu preço, pensou Jonas. E algumas das melhores coisas são aquelas que mais cortejam a chegada da morte. Nunca pensara em abrir mão de qualquer prazer em sua vida. Por que isso iria ser diferente agora? E que diferença fazia se agora a morte parecia mais próxima? Ainda estava vivo.

Respirou fundo, e certificou-se de que ainda conseguia respirar sem desconforto. Encheu o copo. Bebeu. Chamou o garçom e pediu mais uma cerveja enquanto a garrafa sobre a mesa ainda estava na metade. Queria fartura. Começou a procurar pelos nomes dos amigos e amigas na agenda do celular. Queria ligar para todos. Queria dar uma festa. Quem se importa em morrer, se você pode estar vivo até o fim? Não queria ficar triste nem sentir pena de si mesmo. Queria abraçar a vida, abraçar as pessoas, transar, gozar, beber, rir, fazer tudo que tornava boa a vida. Não havia mais com o que se preocupar. A morte o libertava de todas as preocupações, e lhe devolvia a vida. Jonas resolveu aceitar o presente.

Acendeu o cigarro e decidiu viver até o dia de sua morte. Parecia-lhe muito estúpido fazer qualquer outra coisa. E assim, Jonas continuou vivo -- imortal até que se provasse o contrário, como todos nós. Todo mundo morre. Só varia o quando e o como, e o quê você fez antes disso. Jonas sabia muito bem o que faria agora. Iria viver como se não houvesse amanhã. Finalmente, isso era verdade. Jonas brindou à morte e bebeu a vida, e foi feliz com isso. E assim foi."




Antes que alguém pergunte. A história não é biográfica (e muito menos autobiográfica), mas eu entendo o Jonas...

Quem há de dizer o que é certo ou errado, ou uma boa forma de se viver ou morrer? Cada um sabe da própria vida e da própria morte. Estamos aqui para ser felizes, e tirar bom proveito desta vida. Melhor ainda se pudermos fazer algo bacana -- amar, deixar alguma obra bela, fazer alguma diferença na vida das pessoas -- neste meio tempo.

Hoje eu escrevi um conto. Amanhã, se estiver vivo, farei outras coisas ainda melhores -- beberei, abraçarei e beijarei pessoas amadas, verei a cidade, farei coisas que gosto...

Assim segue a vida, para mim e para o Jonas, até o fim.

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Acorda pra Sonhar - Fragmento

Por vezes sonho em escrever alguns contos que, por indisciplina ou preguiça ou qualquer outro motivo assim, acabo não escrevendo. Fico sempre com a sensação de que algum dia voltarei àquele conto e saberei o que dizer, saberei o que escrever. Por vezes tenho vontade de desistir, mas isso não faz a menor diferença. Penso em apagar o conto para não ter mais que pensar nele, mas isso também não faria a menor diferença. Então eu os deixo lá, esperando a possibilidade de que eu um dia acorde e saiba escrevê-lo de um jeito até melhor do que o comecei.

É assim com muitos de meus contos, principalmente com este que seria um de meus prediletos se eu um dia conseguisse terminá-lo. Seu nome é Acorda pra Sonhar.

Reproduzo abaixo a primeira parte do conto, revisada rápida e não invasivamente hoje. Não me lembro quando o comecei. Espero que um dia acorde e saiba como terminá-lo...


(fragmento de Acorda pra Sonhar)

"Você acorda com o despertador, mas não está realmente acordado. De fato, você não esteve realmente acordado desde... desde que se lembra. Sentado na cama, um tanto relutante - você não quer ir para o trabalho - tenta se lembrar de seus sonhos. Não consegue lembrar-se nem sequer se sonhou. Lembra-se vagamente Dele, do Outro, e da forma como Ele olhava pra você, mas não sabe se O sonhou ou se só O imaginou. Todas as perguntas já desapareceram quando você começa a escovar os dentes, balançando-se para um lado e para o outro e morrendo de sono. Você não está realmente acordado, mas está de pé. Tem que se contentar com isso. Ao menos não vai perder a hora novamente. Se Ele estivesse alí, lembraria você de perguntar a si mesmo quem é você. Você provavelmente não saberia a resposta. Você não está acordado o bastante para isso.

Cambaleante, com a cabeça vazia e um bocado tonto, você começa a se vestir. Tenta se lembrar se bebeu ontem, ou se ficou acordado até muito tarde. Você quase sempre faz alguma das duas coisas. Passando o dia inteiro no trabalho você não tem muito tempo para dedicar a você mesmo. Não que você utilize muito bem o tempo que rouba do seu sono. Você não presta muita atenção na roupa que veste. Uma calça e uma camisa que você usou apenas uma vez nos últimos dias, as botas de sempre, um casaco para a chuva do fim do dia... Você tem que economizar roupas, pois a lavanderia está cara e você não é muito bom com o dinheiro. No caminho até o carro você fica ofuscado pelo sol e se lembra que esqueceu os seus óculos escuros. É uma forma levemente ruim de começar o dia.

Dirigir nem sempre é uma coisa prazeirosa para você. Você até queria gostar, mas por algum motivo acha tão enfadonho quanto qualquer outra coisa. Quando é dia as ruas estão cheias e todos os sinais da W3 parecem se fechar quando você se aproxima deles. É um saco. Quando está quente, fazendo aquele calor matinal das épocas de chuva no cerrado, e você está rodando rumo a outro dia entediante, dirigir é quase uma tortura. Por outro lado você gosta de dirigir à noite, quando as ruas estão vazias, quando você pode acelerar o carro e dirigir de um jeito menos automático. Geralmente você está bêbado, ou ao menos animado, nestas situações. Você geralmente se diverte mais quando está bêbado. Algo em você acorda nestas horas, e uma outra parte que não te faz muito feliz vai dormir. Mais um sinal fechado, e você não quer pensar em você mesmo. Está entediado, mortalmente entediado, e o dia está apenas começando.

Você desce do carro e tranca a porta. Você nunca tem saco de colocar o alarme. O dia está quente e você está muito longe de onde queria estar, embora você não saiba ao certo onde você queria estar. Um colega de trabalho acena pra você. Ele está descendo de seu carro também. Parece animado. Você acena de volta, consciente de que deve estar exibindo um sorriso amarelo beirando o marrom. Duas senhoras olham para você enquanto você caminha para a entrada do edifício. Olham como se você fosse um bocado esquisito, o que talvez você seja. Você as ignora, como ignora a maioria das pessoas. Nem sempre você sabe o que dizer a elas. Isso te deixa nervoso, pois as pessoas parecem esperar que você diga algo a elas. Na maior parte do tempo você apenas não está interessado no que elas tem a dizer também. Mesmo assim, ultimamente você não acha que tenha muito a dizer também.

Ás vezes você queria ser normal -- ser como os outros -- mas você não sabe ao certo o que isso quer dizer. Quando olha de verdade para a vida da maioria das pessoas que o cercam, você tem a impressão de que eles não são felizes. Parecem de fato viver vidas muito chatas. Veja aquele pessoal do escritório, e mesmo aqueles seus amigos lá do boteco. Eles se divertem ao modo deles, mas você não tem certeza de que se divertiria no lugar deles. Há algumas pessoas cuja vida e modo de ser você admira, mas é isso... você gosta que elas não sejam você, para que elas possam estar em sua vida. De qualquer modo você não iria querer viver a vida delas -- elas também parecem inadequadas para você -- não são o tipo de vida que poderia ser a sua vida. Então você se pergunta o que é ser normal, não encontra resposta, e acaba desistindo da idéia. É então que você se sente bem com a idéia de tentar ser você mesmo. Não que você saiba ao certo o que isso quer dizer também.

Sentado em sua mesa, você liga o seu computador e espera impacientemente pela inicialização do sistema. Todos à sua volta estão trabalhando. Alguns acenaram para você enquanto você chegava. Você acenou de volta, fingindo estar feliz. Geralmente as pessoas se contentam com isso. Olhando para a tela preta onde passam linhas e mais linhas de um computês impenetrável do qual você só entende uma ou outra coisa, você traça um paralelo entre aquilo e a sua vida. Você poderia entender muito mais do que entende, mas não tem saco para tentar entender, e então as coisas simplesmente passam. Mais uma vez você resolve não pensar nisso. Gostaria de saber para onde ir, ou o que fazer para ser feliz. Gostaria de perguntar para Ele, mas Ele deve ser apenas parte da sua imaginação. Algumas pessoas tem amigos imaginários. Eles aparecem, falam, contam histórias e segredos, e ouvem o que você tem a dizer. Você só tem uma pessoa imaginária que está em algum lugar que você nâo sabe ao certo qual é, que nunca aparece, nunca diz nada e apenas olha pra você enquanto você o imagina. Ao mesmo tempo Ele parece muito com você, e não se parece em quase nada. É como se Ele fosse alguém que você gostaria de ser, mas isso só parece possível no lugar onde Ele vive, e provavelmente este lugar também é parte da sua imaginação. Olhando para a tela do computador, você percebe que este já está pronto para o uso. Você não tem que pensar para descobrir que você não quer usá-lo, de qualquer forma. Então apenas checa o seu email e fica tentando se distrair na internet enquanto ninguém olha de modo estranho para você por isso.

Alguns emails te interessaram. Um ou outro de pessoas queridas, um ou dois dizendo coisas interessantes. Você os respode com um expontâneo ar de sábio enigmático e divertido. Nestes momentos você até gosta de você -- nos momentos em que está escrevendo algo -- mas o prazer é momentâneo e você volta a ficar entediado. Há alguma coisa faltando, sempre houve, em você ou sua vida. Por vezes você acha que Ele sabe a solução. Por vezes você acha que a solução não existe, e que a vida é assim mesmo. Em dias como este, você prefere nem notar que alguma coisa está faltando.

Ele deve estar rindo de mim em algum lugar, você pensa. Foda-se, pare de rir e venha aqui me tirar desta vida se é que você existe -- você diz entredentes. Nada acontece. A vida deve ser assim mesmo. Este é mais um dia ruim. Quem se importa? Ele? Você não se importa. Você gosta de acreditar que está tudo bem, quase tanto quanto gosta secretamente de acreditar Nele. Nenhuma das duas coisas te faz mais feliz. Mas o que mais você pode fazer, afinal?

Em dias como estes, você se sente como um náufrago. Não, pior do que isso! Em dias como estes você se sente ridículo por se sentir como um náufrago. É uma merda. Ou nem é tão ruim. Muitas coisas poderiam ser piores. Você se sente pior por isso.

No fundo, você só queria acordar deste sonho ruim. Mas o quê aconteceria se você acordasse?
Até o trabalho parece menos pior do que ficar preso nesta arapuca de pensamentos que não saem do lugar, então você decide trabalhar. Mesmo assim, uma voz lá no fundo continua ecoando na sua cabeça e dizendo que você só queria acordar..."


Um dia eu descubro como contar o que acontece depois. Prometo que conto pra vocês, quando souber...

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25 de jul. de 2007

Traduzindo o Harry antes que a Lia Wyler estrague o texto...

A Paula Góes contou no blogue da Liga dos Blogues sobre Tradução, ecoando matéria da Sandra Carvalho em seu blogue no site da Info, que "um grupo de mais de 400 adolescentes brasileiros, em multirão, acabaram a tradução de Harry Potter and the Deathly Hallows do inglês para o português da noite para o dia - apenas 4 dias após o lançamento mundial da edição oficial.".

Espero pelo relato da Luana Selva a respeito da qualidade desta tradução. De qualquer forma, se mesmo apesar dos eventuais deslizes de amadores o texto traduzido pela galera fugir dos infantilismos de tradutora "profissional" de Lia Wyler, já é um GRANDE passo.

O ponto mais importante dessa história toda é a enorme "barriga" marcada pela indústria editorial, que assim como as indústrias fonográfica e cinematográfica parece AINDA não ter entendido o que está acontecendo no mundo à sua volta. Nestes tempos de internet e organização em rede, não adianta tentar "segurar" nenhum conteúdo. Tudo que interessa acaba caindo na rede e sendo apropriado pelos "comuns". Se a big media vacila, a gentesfera já está na área e faz o gol.

Um brinde à tradução colaborativa e à mobilização em rede!

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Leituras e "A Gramática dos Silêncios"

Tenho mergulhado em leituras interessantes. Das "Palavras Andantes" de Galeano, emprestado de minha doce companheira, à releitura de trechos de vários livros lidos há muito ou pouco tempo, como a trilogia do Senhor da Guerra (de Bernard Cornwell), o Abarat de Barker e o "World of Tolkien" de David Day. A vontade de escrever, e as imagens e fragmentos ansiosos para ver o mundo, borbulham dentro de mim. Quando encontrar um momento, escreverei.

Mais do que tudo, tenho mergulhado na gramática dos silêncios e no universo do indizível. Além de qualquer história que possa ser contada, as histórias que se vive -- aquelas que são além das palavras -- são o que inflama as fogueiras da alma de um poeta. Por causa delas tenho cada dia mais vontade de escrever...

A vida não é fácil, mas tenho vivido encantado pela Dádiva.

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19 de jul. de 2007

sobre escrever e não escrever, dádiva, sonhos escritos e traduções infantis de livros.

Está dificil escrever estes dias. Não é só a correria. Minha cabeça e meu coração também voam por outros lugares bem longe do teclado e de meus escritos. Mesmo assim, gostaria um bocado de conseguir sentar e escrever alguma coisa vez por outras nestes dias...

Mas não se pode ter tudo, e por hora prefiro as dádivas que vivo à minha escrita frenética e solitária de outrora. Tudo flui, e um dia ou outro, de um jeito ou outro, acabo voltando a escrever.

Por hora, me divirto quando posso em ler o que meus outros escritores andam pensando. A Luana Selva, por exemplo, irrita-se com as traduções de Lia Wyler para a série Harry Potter e nos lembra a todos que literatura infanto-juvenil não é literatura para débeis mentais. Antes disso, débeis mentais são aqueles que subestimam a sabedoria do infante frente a um livro.

Já a doce-amarga Patrícia Nardeli anda transformando velhos sonhos em novos escritos. Adoro tudo que ela escreve, mas sou um bocado suspeito para opinar, eu diria. =]

Enquanto isso, o Ernesto Albuquerque (o meu companheiro bukowskiano de tardes na extinta Estação 109) começou timidamente seu blogue, publicando algumas poesias. Não desista, Ernesto. Leva-se tempo para que um blogue de poesia atraia toda a atenção que gostaríamos! A sua poesia sobre a 'imortalidade' realmente me lembra de velhos tempos...

É tudo uma questão de encanto e dádiva, seja na literatura, seja na tradução, seja na vida.

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11 de jul. de 2007

marcas

"[...]no lugar de alianças ou promessas, usavam hematomas, marcas de mordidas e beijos brutos -- lembranças na carne da presença do outro em seus corpos -- para celebrar sua união. dizem que é coisa de gente louca, mas eles eram felizes em sua loucura.[...]"

só um fragmento que me ocorreu enquanto escovava os dentes.

como faz frio nesta casa vazia no topo da colina!

é hora de dormir.
amanhã me espera um dia ainda melhor.

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literar.org



"Fabiano Franz, formando do curso de Web Design e Programação, criou o site http://literar.org para publicação livre de textos. O endereço já está liberado para uso público.

Fabiano Franz defende a idéia de democratizar a publicação de textos na Web, indiferente do autor e do estilo. “Qualquer pessoa pode ser , independente de seu status, produção literária prévia ou avaliação crítica, um autor literário”, diz. No seu site, o usuário tem liberdade para publicar textos, ler e votar nos textos favoritos, gratuitamente.

A idéia inicial do projeto surgiu a partir de um artigo do pensador francês Michel Foucault, intitulado "O que é um autor?". Franz conta que nesse artigo, Foucault questiona o conceito de autoria, na sociedade atual. Em especial a partir do advento da imprensa, em que foi reforçada a idéia de que o ato de escrever e tornar-se um autor é privilégio de poucos, e aos demais indivíduos fica reservado apenas o ato de ler. Por outro lado, o advento das ferramentas tecnológicas trouxe grande revolução na área da música digital, como o mp3, e para o campo do audiovisual, como o site Youtube. Porém no mercado editorial e na área de literatura as iniciativas ainda é pequena.

O projeto surge motivado pela necessidade de mudança dessa realidade, comenta Franz. O site já possui mais de 150 textos publicados, compreendendo poesias, contos, narrativas, ensaios, crônicas e outros. Para o aluno, este foi o "pontapé inicial", como ele mesmo diz, e pretende continuar com este trabalho. "Há várias novas propostas, uma delas é a criação do "narrador", em que as pessoas possam "ouvir" os textos dos autores", comenta.

Franz explica que usou a concepção de preceitos dos aplicativos da Web 2.0, que não há um domínio centralizado. "A própria comunidade 'controla' a publicação. Se um conteúdo tem boa aceitação ele será promovido, podendo vir a aparecer em lugares de destaque no site. Já os textos com menor aceitação pelos usuários simplesmente não alcançarão boas posições. Essa aceitação dos textos se dá por meio de votação", explica.[...]"
(extraído do blogue do literar.org, mas originalmente publicado aqui)


O site me pareceu bem legal. Tem cheiro de rede social misturada com site de publicação de escritos. Já fiz o meu cadastro por lá, e vou ver se publico alguns de meus escritos já publicados no Overmundo por lá. Se a recepção for boa, começo a dedicar uma ou outra coisa nova ao site também.


UPDATE:
Publiquei "A moça acenando na janela" (eu nunca me decido entre o "na" e o "à" neste título) e "Reflexões sobre o fio de uma faca" por lá. Vamos ver qual será a recepção. Em breve publico outros contos, como "Transgressão" e "Uma casa morrendo".

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Quando o cisne canta - fragmento

Estava retomando um velho conto começado no ano passado (A Chuva, que devo publicar em breve). De uma certa forma, ele me cativou e me chamou de volta a trabalhar nele.

Mas antes de voltar a trabalhar nele, me debrucei por alguns minutos sobre outro velho conto, este mais antigo ainda, chamado "Quando o cisne canta". Nunca foi terminado, e não me lembro mais dos detalhes de como seria. Acho que contava a história dos últimos anos da vida de alguém doce e romântico -- e frágil, muito frágil em sua doçura e romantismo. Mas talvez não. Alguns de meus escritos interminados, com o passar dos anos, tornam-se misteriosos até mesmo para mim.

De qualquer forma, percebi que não poderia retomar este escrito. Aquele que o escreveu era alguém que fui há muitos anos. Hoje minha doçura tem outro sabor, e meu romantismo tem outros tons. Nunca mais terei a inocência que teceu estas palavras, para o bem ou para o mal. De qualquer forma, em homenagem ao Daniel de muitos anos atrás, publico a parte do conto que chegou a ser escrita.

Com vocês, um (enorme) fragmento do conto "Quando o cisne canta":

"Quando o cisne canta...

Dois tiros cortam a noite, mais altos do que a música do lugar. Um jovem cai no chão enquanto outro, feito assassino pelo momento, sai correndo por entre os carros do estacionamento. Ajoelhado ao lado do amigo caído, um terceiro jovem chora desesperado...

- NÃO! Puta que pariu! não... NÃO! Ele não está morto! Não acredito! Alguém me ajuda aqui! Atiraram no meu amigo! Alguém me ajuda pelo amor de Deus! Por favor... por favor... Alguém me ajuda...
- Calma garoto! Sai de cima dele! Nós somos socorristas. Espera aí que a gente vai olhar ele.
- Ele não pode estar morto!
- Calma. Fica calmo...
- Ele está bem?! Me diz que ele ainda está respirando! Ele tá vivo não tá?
- Eu sinto muito... Você tem o telefone da família dele? Alguém chame a polícia!

Acho que estas foram as palavras.

É assim que termina. Cai o pano...

Mas sempre há um antes. Vamos voltar ao antes para que o fim faça sentido. Sem uma vida, uma morte é apenas uma morte.


*


Marília, Téo, Felipe e Márcia, José e Priscilla, Marcos, Carlinha... e eu. Éramos todos amigos então. Éramos todos jovens e cheios de vida então. Como jovens, considerávamos que haveria sempre mais vida. Haveria sempre outro dia para viver. Outras coisas a conhecer. Outras coisas para sentir...
Quando somos jovens nos consideramos imortais. Imortais até que se prove o contrário.
Eu já sabia disso então. Eles descobriram, no fim.

Conheciam-se desde os tempos de Colégio Objetivo. Marília e Priscilla eram amigas desde a infância, Priscilla era amiga e ex namorada de Marcos. Marcos e Téo tocavam na mesma banda há um ano. Márcia, José e Felipe moravam no mesmo prédio. Carla era amiga de Téo, e a menina mais nova da galera. De fato morávamos todos ali perto, como boa parte das pessoas que estudavam no Objetivo naquela época. Eram todos amigos, ou ficaram amigos naqueles dias. E eram dias bons, cheios de sol, e noites cheias de música e promessas. Eu era recém chegado no colégio, um menino frágil e assustado com uma mochila pesada demais, andando pelos corredores cinzentos e azulados daquele lugar.

Logo nos primeiros dias de aula houve uma festa. Talvez fosse aniversário de alguém. Fosse qual fosse o motivo da festa, era uma festa e estávamos lá. Quando eu vi Márcia na festa, achei que estava apaixonado por ela. Ela é uma menina alta e magra, com o rosto fino e bonitos e grandes olhos escuros. Usava o cabelo bem comprido naquela época, e ele escorria por seus ombros como uma cascata negra. Lembro ainda de como suas orelhas saíam de seus cabelos, tão claras na luz negra, contra o fundo escuro de fios escorridos. Ela usava maquiagem demais, e talvez fosse então magra demais também, mas eu achei que estava apaizonado por ela.

Tocava uma daquelas músicas dançantes de que todos eles gostavam na época. Acho que José estava lá. Talvez estivesse dançando com Marília então. Marília era uma das meninas mais bonitas que eu já havia visto naquela época, e isso me assustava um bocado. Eu estava sentado em um sofá. Tinha um copo de Campari na mão e me sentia feliz com isso. Não estava ainda muito acostumado a beber, e os goles que já havia tomado já faziam efeito. Ficava olhando Márcia conversando com uma de suas amigas, logo ali do outro lado da sala, e pensando em como era apaixonado por ela. Quando ela olhou para mim e sorriu eu pensei em fazer alguma coisa, dizer alguma coisa, andar até lá. Mas eu não fiz nada. Apenas fiquei olhando para ela com algo que esperava ser um sorriso em meu rosto.

- “Ela é muito gatinha não é?” disse para mim o cara de cabelos compridos que estava sentado a meu lado no sofá, sua voz quase engolida pela música.
- “É sim. Ela é linda...” respondi, meio tímido.
- “Ela é meio difícil. Um brother meu chegou nela hoje mais cedo e levou um toco dela.” disse ele, em tom de camaradagem ainda quase engolido pela música.
- “É sim... Ela é linda mesmo.” disse eu. Acho que nem tinha ouvido o que ele falou.
- “Você tá afim dela? Chega lá então. Ela tá sozinha...” disse ele, chegando mais perto do meu ouvido, com um tom encorajador.
- “Não. Acho melhor não...”, suspirei...
Ele apenas ficou olhando para mim, com um sorriso meio intrigado no rosto. Por fim voltou a beber sua cerveja e olhar para frente. Este é o Téo.

A festa continuava, e Márcia não estava mais à vista. Acho que havia ido para dentro de um dos quartos com amigas, ou talvez com um amigo. Eu já estava bêbado, conversando com amigos que acabara de fazer: Téo, Felipe, Marília e José. Eram todos de minha turma do colégio, mas nunca havia trocado muitas palavras com eles até então. Estávamos todos animadamente conversando sobre este ou aquele filme, ou sobre RPGs, ou sobre qualquer coisa que para minha surpresa descobri que interessava a eles também. Sentia-me em casa com eles, e não estava acostumado a fazer amigos desta forma. Sentia então com toda a certeza bêbada de que estava fazendo amigos para o resto da vida. Bem, eu estava quase certo.

Não me lembro ao certo quando foi que Márcia reapareceu. Acho que foi uma surpresa descobrir que ela era também amiga de meus novos amigos. Descobri depois que o amigo de Téo que havia sido recusado por Márcia era o próprio José, e ele estava com Marília na festa. Estas eram coisas que eu não entendia. Eu era um romântico. Acho que sempre fui um romântico, até o dia em que deixei de ser.

De qualquer forma, é assim que começa a história.


*


O tempo passou, como o tempo sempre passa, e continuamos nos falando todos os dias; antes, depois e durante as aulas. Alguns dias depois daquela festa conheci Marcos e Priscilla, e conheci também a Carlinha. Era uma bonita tarde depois de uma prova e estávamos todos reunidos debaixo de um bloco. Estava chovendo. Nossas roupas estavam um pouco molhadas da pequena corrida na chuva para chegar até ali. Lembro-me da sensação de libertade, de vida, que aquelas roupas molhadas me davam. Eu estava particularmente feliz naquele dia. Ainda achava que era apaixonado por Márcia mas, sem coragem e fé para fazer qualquer coisa a respeito, me contentava em olhar para ela e deixar o sentimento arrefecer. Além do mais, eu gostava demais daquele grupo de pessoas, meus primeiros amigos realmente divertidos, para arriscar alguma coisa. José e Marília estavam um pouco afastados de nós. Beijavam-se sentados ao pé de uma das pilastras do bloco. Téo e Felipe falavam sobre o dia em que Felipe pegou o carro do pais e foram todos para uma festa no Lago Norte. Foi pouco antes de nos conhecermos, pelo que soube. Contavam dos acontecimentos da festa, e de como Carlinha havia ficado afastada do grupo, triste por algum motivo. Para eles aquela tristeza dela não fazia sentido. Para mim, intuitivamente, fazia todo o sentido. Nâo era a primeira vez em que ouvia falar dela, mas naquele momento senti uma identificação enorme por aquela menina silenciosa da qual eles falavam. Este sentimento se afogou em meio às histórias que contavam.

Marcos e Priscilla chegaram depois. Andavam de mãos dadas, na chuva. Senti inveja da alegria que tinham em seus rostos. Senti inveja por terem um ao outro tão cúmplices. Senti inveja de Marcos, confesso. Mas sentia também uma alegria de estar alí podendo ver aquilo, acreditar que a vida podia ser daquele jeito. Chegaram e disseram oi para todos, e fomos apresentados, e eu mal consegui dizer que era um prazer conhecê-los. Então eles se sentaram e começaram a falar de outras coisas, mas elas não pareciam dizer respeito a mim. Não me interessava, de qualquer forma. Eu continuava olhando para aquela calçada banhada pela chuva. Olhando para o vazio e pensando em alguma coisa. Então alguém me cutucou. Acho que foi o Téo.

- “Você está calado demais. Parece até a Carlinha quando bebe...”

Todos riram, menos eu. Continuava um pouco amuado, embora suficientemente satisfeito por estar ali. Não estava com vontade de conversar. Foi então que Téo se levantou e disse animado:

- “Por falar nela. Olha lá ela chegando.”

Meu coração deu um pulo e depois ficou muito quieto. Levei alguns segundos, para mim quase uma eternidade, para levantar os olhos e seguir o dedo de Téo que apontava para o mesmo lugar onde tinha meus olhos fixos momentos antes. Em meio às gotas da chuva, de cara fechada, descia uma menina pequena, quase miúda, com a pele muito branca contrastando com o cabelo curto muito vermelho. Quase desaparecia dentro de um sobretudo de brim escuro, e parecia ter se animado um pouco ao ver seus amigos debaixo do bloco. Nos momentos em que ela caminhava em nossa direção, com um sorriso torto nos lábios finos, eu lembro até hoje. Havia algo de cinemático naquele momento, emoldurado convenientemente por duas árvores e tomado pela luz neutra dos dias chuvosos em Brasília. Seus olhos pequenos, seu nariz forte sobre a boca pequena, a mão pequena segurando as alças da mochila sobre o ombro, as botas e a calça jeans meio velha, e o algo que estava em seus olhos e além deles... Fiquei paralisado ao ver Carlinha pela primeira vez. Naquele momento eu soube que nunca estivera apaixonado antes. Alí, debaixo daquele bloco, eu senti um calafrio percorrendo meu corpo e um calor enorme dentro do peito. Eu descobri o que era estar realmente apaixonado.

Eu poderia morrer por aquele sentimento...

É."

Esta foi a última linha que escrevi no arquivo. Depois disso, fiz anotações ininteligíveis sobre como ele continuava, mas resolvi descartá-las neste post. Tudo que restou foi a poesia que fechava o conto:

“death makes angels of our dearest sinners...”
trecho de uma velha poesia minha,
dos tempos do Objetivo e das festinhas
e da vida que parecia não acabar nunca mais...

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Pétala - fragmento

Mais um fragmento triste, este antigo e encontrado por acaso enquanto procurava por anotações de velhas fábulas. Foi escrito em janeiro deste ano, inspirado pelo caminhar triste de uma jovem no calçadão de Copacabana. Nunca voltei a trabalhar nele depois daquele dia. Desde já, estava cansado de histórias tristes. De qualquer forma, é um escrito escuro que merece ver a luz...

"Dizia não gostar de flores, mas mesmo assim ressentia-se de nunca tê-las recebido. Debaixo de sua dureza adiquirida nos seus muitos dias tristes e frustrados, havia ainda carne macia demais. E ela chorava sem derramar lágrimas, por sob a máscara de indiferença que era tudo que ainda tinha. Andava cabisbaixa quando voltava da escola para casa, depois de mais um dia em que nada acontecera. Pisava as pedras portuguesas com passos leves de ninfa e com todo o peso de seus quinze anos empilhado sobre a mochila de brim escuro. Ouvia música em seu iPod, mas não cantava. Não acreditava que tivesse motivos para cantar, mas não aguentava o silêncio..."


Agora chega de coisas tristes, não é?

Vamos a algumas coisas mais doces e luminosas.

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anjo da guarda - fragmento

este é um fragmento estranho que me surgiu enquanto trabalhava em outro escrito. não tem nenhuma conexão com o que eu escrevia. é quase um vômito literário, sem sentido e sem piedade. é um fragmento...

"O homem vestido de preto esperava nas sombras por um chamado. Quando o barulho dos gritos o alertou de que era seu momento de entrar em cena, não o fez com alarde. Caminhou em silêncio, e devagar.

Sob a luz, um jovem casal discutia raivosamente. Podia ver que choravam. Havia desespero nos olhos do jovem. O homem de preto procurou não se emocionar com as lágrimas de seu protegido, ou as da companheira dele. Não se interessava pelo que diziam. Já sabia. E sabia o que era necessário fazer. Mesmo sabendo que seu irmão sofreria por várias noites depois daquilo, o homem escuro sabia o que precisava fazer. Desembainhou com vagar a lâmina escura. Quando a moça de olhos tristes injetados de fúria o viu, estes se abriram em pânico. A fúria desaparecia, dendo lugar à compreensão e ao pavor. Percebia tarde demais o que acontecia, e talvez estivesse arrependida. Ela implorou clemência. Era tarde demais para aquilo também. O homem de preto sabia que ela acabaria por matar seu protegido, e isso ele não podia permitir. Seu movimento foi rápido. Não se pode dizer que ela não sofreu, mas o ruído metálico da faca caindo de suas mãos pequenas confirmou as certezas do homem de preto. Ela acabaria mesmo por matar aquele que ele protegia. Estava fora de controle, e precisava ser abatida antes que derramasse o sangue do jovem que agora chorava sua morte. O homem de preto procurou não olhar nos olhos do jovem. Até mesmo ele se perturbaria com tanta dor. Mas tudo iria ficar bem cedo ou tarde, bem sabia. Por hora, ele estava apenas cumprindo a sua função. Esperou em silêncio, surdo aos gritos de desespero do jovem. Quando a menina expirou em meio à poça de sangue, sabia que não levaria muito tempo até que estivessem em casa. Seu irmão só precisava de um pouco de sono, e ele de um bom trago e de ouvir as vozes. A vida tem destas coisas tristes. Quem foi o idiota que inventou as imagens fofas dos anjos da guarda? Certas doçuras só tornam as coisas mais difíceis.

A noite os envolveu como o pano de uma peça que termina quando caminharam em silêncio para longe dali. Ao longe, o mundo girou. Tudo seria diferente agora."


Eu sempre achei muito estranha a idéia de que anjos da guarda sejam coisas doces e boas. As coisas das quais eles protegeriam as pessoas são muito estranhas, e por vezes muito complicadas, para que lhes caiba doçura. Os momentos em que precisamos ser salvos não são belos nem doces, e nem o poderiam ser aqueles etéreos salvadores...

E eu só quero que a vida seja boa, e que as sombras fiquem em seu lugar.

Vamos voltar às coisas doces e boas que me esperam no amanhecer...

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10 de jul. de 2007

Anjo do Tempo - José Craveirinha

Bambos
os joelhos
ó divina ânfora
em que te chovo.

Meu
anjo do tempo
apoteose
do sismo.

Tuas
polpas
gloriosas
em meus tactos.

Cílios
descidos
glória ao sumo
do teu doce
caju novo.

(André Craveirinha in Poemas Eróticos, publicado no Kitanda)


José Craveirinha é foda!
As palavras que não me calam hoje nas músicas,
me gritam na poesia.

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cotidiano (com luz e achocolatado, e uma pitada de saudades) - fragmento

"Abriu a geladeira e pegou a caixa de leite. Tinha a cabeça um pouco cansada pelo trabalho. Apertou a caixa para tentar datar o líquido pelo olfato. É uma coisa temerária a se fazer, mas a cotidianeidade nos deixa inconcientes de nossa tolice. O leite não cheirava mal. Pegou o pote de Toddy e preparou-se um achocolatado. Bebeu. Suspirou tranquilo, com a cabeça quase vazia. Olhou pela janela. Sentiu saudades. Terminou de beber seu leite e foi para seu quarto.

Decidiu que não trabalharia mais hoje. Era uma noite fria e silenciosa. Deixara a janela aberta. Acendeu um cigarro e decidiu escrever. As palavras não vinham. Tinha vontade, tinha o que dizer -- a vida estava repleta de coisas fortes -- mas não tinha as palavras. Sentiu saudades. Levantou-se e foi até a varanda. Procurou a lua que não estava lá, e contemplou as colinas distantes que estavam. As luzes distantes da cidade se embaralhavam em sua vista cansada. Não. Não era cansaço. Seus óculos estavam sujos. Limpou-os na barra da camisa enquanto cruzava a sala fria. Colocou um casaco. Pensou em beber água. Foi à cozinha, lavou um copo, bebeu água, guardou coisas. Voltou para seu quarto para tentar escrever novamente. Sentiu saudades. Saudade do tipo bom, que é uma carícia na memória. Decidiu procurar seu celular. Queria ouvir uma certa voz, mesmo sem ter muito a dizer naquele momento. Nem sempre se precisa ter algo a dizer. Certas dimensões da dádiva são não verbais. Por vezes uma voz, uma presença, vale mais do que palavras. Geralmente é assim.

Procurou seu celular. Não o encontrou. Sentou-se novamente no computador, incomodado. Sabia que o encontraria eventualmente, mas o impedimento de realizar seu desejo tornara-o mais urgente. Tentou escrever. Sem palavras. Não tinha palavras para dizer. Só queria ouvir algumas, fossem quais fossem, só pelo prazer de ouví-las da pessoa certa. Respirou fundo, pensando onde poderia estar seu celular. Quando olhou para o lado e viu o pote de Toddy sobre a mesa do quarto, apercebeu-se de um fato ridículo. Foi até a cozinha -- rindo-se de si mesmo -- e abriu o armário de comidas. Lá estava o seu celular. Discou, ainda rindo, e ouviu a voz que queria ouvir. Conversaram, leves e alegres. As saudades novamente se tornaram uma carícia da memória, e agora ele tinha vontade e paz, e as palavras, para escrever.

Dito e feito."


Estava precisando escrever. Este foi o fragmento tampão.
Vamos ver o que mais vai jorrar nesta noite...

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6 de jul. de 2007

Blogue do Teatro Oficina Perdiz

A Paula Campos acabou de me avisar (err, na verdade, ela avisou ontem e eu só vi hoje) que o Teatro Oficina Perdiz agora tem um blogue, para manter informados os usuários e amantes daquele pitoresco lugar de conserto de carros e almas.



Um abraço grande para o pessoal do Perdiz, e para a Paulinha, que é uma guerreira em nome de suas causas.

Abraços do Verde.

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Companhia Dell'Arti em temporada extendida.

Acabei de saber, por meio de um comentário da Raquel Cappuci aqui no Caderno do Cluracão, que a Companhia Dinastia Dell'Arti vai ter sua temporada de Lisbela e o Prisioneiro extendida por mais um final de semana.

Devido ao sucesso da montagem, a peça será novamente encenada neste final de semana, dias 6, 7 e 8 de julho. Ao que parece no mesmo lugar na última montagem (pois a Raquel esqueceu de me falar o local da apresentação).

Espero que ela passe por aqui para dar o resto da informação.

Abraços do Verde.

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4 de jul. de 2007

situação.

Como é difícil trabalhar nos dias em que tudo que se quer é escrever poesia na carne das paredes brancas e perseguir elefantes girafa nas savanas matinais...

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