11 de jul. de 2007

Quando o cisne canta - fragmento

Estava retomando um velho conto começado no ano passado (A Chuva, que devo publicar em breve). De uma certa forma, ele me cativou e me chamou de volta a trabalhar nele.

Mas antes de voltar a trabalhar nele, me debrucei por alguns minutos sobre outro velho conto, este mais antigo ainda, chamado "Quando o cisne canta". Nunca foi terminado, e não me lembro mais dos detalhes de como seria. Acho que contava a história dos últimos anos da vida de alguém doce e romântico -- e frágil, muito frágil em sua doçura e romantismo. Mas talvez não. Alguns de meus escritos interminados, com o passar dos anos, tornam-se misteriosos até mesmo para mim.

De qualquer forma, percebi que não poderia retomar este escrito. Aquele que o escreveu era alguém que fui há muitos anos. Hoje minha doçura tem outro sabor, e meu romantismo tem outros tons. Nunca mais terei a inocência que teceu estas palavras, para o bem ou para o mal. De qualquer forma, em homenagem ao Daniel de muitos anos atrás, publico a parte do conto que chegou a ser escrita.

Com vocês, um (enorme) fragmento do conto "Quando o cisne canta":

"Quando o cisne canta...

Dois tiros cortam a noite, mais altos do que a música do lugar. Um jovem cai no chão enquanto outro, feito assassino pelo momento, sai correndo por entre os carros do estacionamento. Ajoelhado ao lado do amigo caído, um terceiro jovem chora desesperado...

- NÃO! Puta que pariu! não... NÃO! Ele não está morto! Não acredito! Alguém me ajuda aqui! Atiraram no meu amigo! Alguém me ajuda pelo amor de Deus! Por favor... por favor... Alguém me ajuda...
- Calma garoto! Sai de cima dele! Nós somos socorristas. Espera aí que a gente vai olhar ele.
- Ele não pode estar morto!
- Calma. Fica calmo...
- Ele está bem?! Me diz que ele ainda está respirando! Ele tá vivo não tá?
- Eu sinto muito... Você tem o telefone da família dele? Alguém chame a polícia!

Acho que estas foram as palavras.

É assim que termina. Cai o pano...

Mas sempre há um antes. Vamos voltar ao antes para que o fim faça sentido. Sem uma vida, uma morte é apenas uma morte.


*


Marília, Téo, Felipe e Márcia, José e Priscilla, Marcos, Carlinha... e eu. Éramos todos amigos então. Éramos todos jovens e cheios de vida então. Como jovens, considerávamos que haveria sempre mais vida. Haveria sempre outro dia para viver. Outras coisas a conhecer. Outras coisas para sentir...
Quando somos jovens nos consideramos imortais. Imortais até que se prove o contrário.
Eu já sabia disso então. Eles descobriram, no fim.

Conheciam-se desde os tempos de Colégio Objetivo. Marília e Priscilla eram amigas desde a infância, Priscilla era amiga e ex namorada de Marcos. Marcos e Téo tocavam na mesma banda há um ano. Márcia, José e Felipe moravam no mesmo prédio. Carla era amiga de Téo, e a menina mais nova da galera. De fato morávamos todos ali perto, como boa parte das pessoas que estudavam no Objetivo naquela época. Eram todos amigos, ou ficaram amigos naqueles dias. E eram dias bons, cheios de sol, e noites cheias de música e promessas. Eu era recém chegado no colégio, um menino frágil e assustado com uma mochila pesada demais, andando pelos corredores cinzentos e azulados daquele lugar.

Logo nos primeiros dias de aula houve uma festa. Talvez fosse aniversário de alguém. Fosse qual fosse o motivo da festa, era uma festa e estávamos lá. Quando eu vi Márcia na festa, achei que estava apaixonado por ela. Ela é uma menina alta e magra, com o rosto fino e bonitos e grandes olhos escuros. Usava o cabelo bem comprido naquela época, e ele escorria por seus ombros como uma cascata negra. Lembro ainda de como suas orelhas saíam de seus cabelos, tão claras na luz negra, contra o fundo escuro de fios escorridos. Ela usava maquiagem demais, e talvez fosse então magra demais também, mas eu achei que estava apaizonado por ela.

Tocava uma daquelas músicas dançantes de que todos eles gostavam na época. Acho que José estava lá. Talvez estivesse dançando com Marília então. Marília era uma das meninas mais bonitas que eu já havia visto naquela época, e isso me assustava um bocado. Eu estava sentado em um sofá. Tinha um copo de Campari na mão e me sentia feliz com isso. Não estava ainda muito acostumado a beber, e os goles que já havia tomado já faziam efeito. Ficava olhando Márcia conversando com uma de suas amigas, logo ali do outro lado da sala, e pensando em como era apaixonado por ela. Quando ela olhou para mim e sorriu eu pensei em fazer alguma coisa, dizer alguma coisa, andar até lá. Mas eu não fiz nada. Apenas fiquei olhando para ela com algo que esperava ser um sorriso em meu rosto.

- “Ela é muito gatinha não é?” disse para mim o cara de cabelos compridos que estava sentado a meu lado no sofá, sua voz quase engolida pela música.
- “É sim. Ela é linda...” respondi, meio tímido.
- “Ela é meio difícil. Um brother meu chegou nela hoje mais cedo e levou um toco dela.” disse ele, em tom de camaradagem ainda quase engolido pela música.
- “É sim... Ela é linda mesmo.” disse eu. Acho que nem tinha ouvido o que ele falou.
- “Você tá afim dela? Chega lá então. Ela tá sozinha...” disse ele, chegando mais perto do meu ouvido, com um tom encorajador.
- “Não. Acho melhor não...”, suspirei...
Ele apenas ficou olhando para mim, com um sorriso meio intrigado no rosto. Por fim voltou a beber sua cerveja e olhar para frente. Este é o Téo.

A festa continuava, e Márcia não estava mais à vista. Acho que havia ido para dentro de um dos quartos com amigas, ou talvez com um amigo. Eu já estava bêbado, conversando com amigos que acabara de fazer: Téo, Felipe, Marília e José. Eram todos de minha turma do colégio, mas nunca havia trocado muitas palavras com eles até então. Estávamos todos animadamente conversando sobre este ou aquele filme, ou sobre RPGs, ou sobre qualquer coisa que para minha surpresa descobri que interessava a eles também. Sentia-me em casa com eles, e não estava acostumado a fazer amigos desta forma. Sentia então com toda a certeza bêbada de que estava fazendo amigos para o resto da vida. Bem, eu estava quase certo.

Não me lembro ao certo quando foi que Márcia reapareceu. Acho que foi uma surpresa descobrir que ela era também amiga de meus novos amigos. Descobri depois que o amigo de Téo que havia sido recusado por Márcia era o próprio José, e ele estava com Marília na festa. Estas eram coisas que eu não entendia. Eu era um romântico. Acho que sempre fui um romântico, até o dia em que deixei de ser.

De qualquer forma, é assim que começa a história.


*


O tempo passou, como o tempo sempre passa, e continuamos nos falando todos os dias; antes, depois e durante as aulas. Alguns dias depois daquela festa conheci Marcos e Priscilla, e conheci também a Carlinha. Era uma bonita tarde depois de uma prova e estávamos todos reunidos debaixo de um bloco. Estava chovendo. Nossas roupas estavam um pouco molhadas da pequena corrida na chuva para chegar até ali. Lembro-me da sensação de libertade, de vida, que aquelas roupas molhadas me davam. Eu estava particularmente feliz naquele dia. Ainda achava que era apaixonado por Márcia mas, sem coragem e fé para fazer qualquer coisa a respeito, me contentava em olhar para ela e deixar o sentimento arrefecer. Além do mais, eu gostava demais daquele grupo de pessoas, meus primeiros amigos realmente divertidos, para arriscar alguma coisa. José e Marília estavam um pouco afastados de nós. Beijavam-se sentados ao pé de uma das pilastras do bloco. Téo e Felipe falavam sobre o dia em que Felipe pegou o carro do pais e foram todos para uma festa no Lago Norte. Foi pouco antes de nos conhecermos, pelo que soube. Contavam dos acontecimentos da festa, e de como Carlinha havia ficado afastada do grupo, triste por algum motivo. Para eles aquela tristeza dela não fazia sentido. Para mim, intuitivamente, fazia todo o sentido. Nâo era a primeira vez em que ouvia falar dela, mas naquele momento senti uma identificação enorme por aquela menina silenciosa da qual eles falavam. Este sentimento se afogou em meio às histórias que contavam.

Marcos e Priscilla chegaram depois. Andavam de mãos dadas, na chuva. Senti inveja da alegria que tinham em seus rostos. Senti inveja por terem um ao outro tão cúmplices. Senti inveja de Marcos, confesso. Mas sentia também uma alegria de estar alí podendo ver aquilo, acreditar que a vida podia ser daquele jeito. Chegaram e disseram oi para todos, e fomos apresentados, e eu mal consegui dizer que era um prazer conhecê-los. Então eles se sentaram e começaram a falar de outras coisas, mas elas não pareciam dizer respeito a mim. Não me interessava, de qualquer forma. Eu continuava olhando para aquela calçada banhada pela chuva. Olhando para o vazio e pensando em alguma coisa. Então alguém me cutucou. Acho que foi o Téo.

- “Você está calado demais. Parece até a Carlinha quando bebe...”

Todos riram, menos eu. Continuava um pouco amuado, embora suficientemente satisfeito por estar ali. Não estava com vontade de conversar. Foi então que Téo se levantou e disse animado:

- “Por falar nela. Olha lá ela chegando.”

Meu coração deu um pulo e depois ficou muito quieto. Levei alguns segundos, para mim quase uma eternidade, para levantar os olhos e seguir o dedo de Téo que apontava para o mesmo lugar onde tinha meus olhos fixos momentos antes. Em meio às gotas da chuva, de cara fechada, descia uma menina pequena, quase miúda, com a pele muito branca contrastando com o cabelo curto muito vermelho. Quase desaparecia dentro de um sobretudo de brim escuro, e parecia ter se animado um pouco ao ver seus amigos debaixo do bloco. Nos momentos em que ela caminhava em nossa direção, com um sorriso torto nos lábios finos, eu lembro até hoje. Havia algo de cinemático naquele momento, emoldurado convenientemente por duas árvores e tomado pela luz neutra dos dias chuvosos em Brasília. Seus olhos pequenos, seu nariz forte sobre a boca pequena, a mão pequena segurando as alças da mochila sobre o ombro, as botas e a calça jeans meio velha, e o algo que estava em seus olhos e além deles... Fiquei paralisado ao ver Carlinha pela primeira vez. Naquele momento eu soube que nunca estivera apaixonado antes. Alí, debaixo daquele bloco, eu senti um calafrio percorrendo meu corpo e um calor enorme dentro do peito. Eu descobri o que era estar realmente apaixonado.

Eu poderia morrer por aquele sentimento...

É."

Esta foi a última linha que escrevi no arquivo. Depois disso, fiz anotações ininteligíveis sobre como ele continuava, mas resolvi descartá-las neste post. Tudo que restou foi a poesia que fechava o conto:

“death makes angels of our dearest sinners...”
trecho de uma velha poesia minha,
dos tempos do Objetivo e das festinhas
e da vida que parecia não acabar nunca mais...

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