um fragmento de "Samhain"
Alma e o quarto escuro
"(...)Alma respirou fundo, parada frente à porta, mordendo os lábios. Aproximou a mão muito lentamente, incerta, da maçaneta. Assustou-se quando a porta se abriu tão facilmente e tão repentina sob o toque de sua mão, movendo-se com um rangido baixo que parecia gigantesco naquele silêncio onde só se ouvia seu coração. A luz da cozinha invadiu o quarto, projetando a sua sombra encolhida sobre corpo imóvel de Sméagan, refestelado sobre a cama. Não sabia se ele dormia. Esperava que acordasse e ao mesmo tempo não queria que acontecesse. Sua resolução, que começava a falhar, a empurrou em passos curtos e incertos para dentro do quarto. Fechou a porta com um gesto vago, e a última luz sufocada pela porta que se fechava iluminou os olhos de Sméagan, que acabavam de se abrir. Ela imaginava ter visto também um sorriso. Exasperou-se, perdida na estrada entre o temor e a excitação.
'Estou aqui', ela disse. Sua voz falhou, e então ela preferiu repetir -- 'estou aqui. eu vim...'. Ele nada disse, mas ela podia ouvir sua respiração. Podia ver, com os olhos que se acostumavam muito devagar com a luz fraca filtrada através da cortina, que ele sentava-se lentamente na cama. Alma permaneceu imóvel, abraçada pela escuridão e pelo silêncio rompido apenas pela respiração dos dois. Não sabia dizer se ele estava nu em meio às tantas cobertas amarfanhadas sobre a cama. Parecia um espectro em sua brancura quase invisível na luz tênue demais. Ele também olhava para ela, mas sua expressão era indecifrável, emoldurando seus olhos rasgados e escuros... tão escuros quanto aquela noite e quanto aquele quarto. Tão escuros quanto as coisas que a escuridão esconde.
Alma deu um passo em direção à cama, mas foi detida pelo gesto quase brusco de Smeagan, que sinalizava para que ela não se aproximasse. Olhou para ele, sem entender o porquê daquilo. Ele sorveu a perplexidade dela por um alongado segundo antes de falar -- "Tire as suas roupas antes de vir para a cama, moça. Elas estão sujas com as coisas da rua.". Alma enrubesceu no escuro. Pensou em ir embora. Virou-se de costas, mas não deu nenhum passo. Isso não fazia sentido. Era para isso que ela tinha vindo. Não havia mais ninguem e nenhum lugar lá fora, naquela noite escura, para onde ela pudesse, ou quisesse, ir. Sentiu uma lágrima se formando em seu olho esquerdo. Sentia-se como uma menina de novo, e isso a assustava. Estendeu a mão pelas costas para alcançar o zipper do vestido curto, e o abriu, puxando-o para baixo. O ar frio tocou suas costas agora nuas e fez com que sentisse um calafrio, mas isso não foi de todo ruim. Abaixou-se para começar a desamarrar as botas, e por alguns segundos viu-se distraída com os cadarços. Smeagan, que parecia ter se levantado da cama enquanto ela se livrava de suas botas altas, falou por detrás dela -- "gosto da sua tatuagem, sabia?". Alma sentiu outro calafrio.
Levantou-se depressa, girando sobre os calcanhares ainda recobertos pelas meias listradas. Esperava encontrá-lo mais perto, mas seu movimento brusco parece tê-lo assustado. Reequilibrava-se de um passo largo dado para trás, que o fez encostar novamente com as pernas na cama. Alma não sabia explicar o motivo de seu pudor, mas não olhou para a nudez dele. Não ainda. Olharam-se por um segundo, olhos escuros em olhos escuros no quarto escuro, e se reconheceram um no outro. Alma levou as mãos aos ombros e puxou seu vestido como quem arranca uma pele morta, inadequada, inútil. Sorriu com apenas um canto da boca ao ver o sorriso de Smeogan, que observava seu corpo de cima a baixo. 'Satisfeito com o que está vendo?', disse ela, retomando a coragem frente à inesperada timidez daquele homem. "Ainda não", disse ele enquanto sentava-se na cama, empurrando-se lentamente com as mãos para apoiar-se com as costas na parede -- "agora venha cá.", completou. Alma caminhou até a cama e colocou-se ajoelhada, com as pernas afastadas, sobre as pernas estendidas dele. Inclinou-se para beijá-lo, mas estacou quando seus olhos voltaram a se encontrar com os dele, agora tão perto. Seus olhos eram tão negros! Sondaram-se, paralizados, olhos nos olhos, por mais um segundo, antes de aproximarem-se por fim para dar o beijo que terminaria com toda aquela angústia.
Seus lábios eram frios, muito frios, e Alma podia sentir como eram igualmente frias as mãos que percorriam suas costas e por fim encontraram seu lugar em seus seios, buscando calor e contato. Continuaram a se beijar, enquanto ela relaxava lentamente as pernas para sentar-se sobre ele, sentindo-o crescer debaixo dela. Mas, de repente, foi sacudida por um espasmo de choro que surpreendeu até mesmo a ela. Afastou seu rosto do dele e o cobriu com as mãos, soluçando baixinho. Ele a abraçou com uma doçura que para ela era também inesperada. Mal o conhecia. Tudo era um tanto inesperado nele, e era em parte por isso que chorava. Entregava-se por fim àquele estranho tão familiar, como tinha desejado silenciosamente por tantas noites, mas também estava assustada. Por quê seus olhos eram tão escuros, insondáveis e tristes? Por quê ele era tão doce? Não havia como aquele momento ser perfeito, dada a sua canhestra estranheza, mas ainda assim era bom e forte demais para que ela aguentasse seguir em frente. Sentia que seu coração podia explodir, ou que o mundo poderia se esgarçar e rasgar à volta dela. Chorou nos braços dele, sentindo raiva de si mesma por estar estragando tudo, sentindo-se importente ao mesmo tempo que se aninhava deliciada em seu abraço. "Porquê você chora, se é que posso perguntar?", sussurrou ele por fim. Alma não respondeu. Chorava porque estava imensamente feliz e porque tinha um imenso medo, e porque sabia que agora estava totalmente perdida. Nada poderia ser tão bom quanto o que estava prestes a ser, pensava ela, mas ainda assim estava trespassada de pavor. Alma sentia-se ridícula, ridiculamente humana, chorando nos braços de Smeagan. Queria-o tanto, tanto, e tinha tanto medo disso, que sentia que não conseguiria tê-lo. Era demais para ela! Ele nem sequer era humano.(...)"
(fragmento não revisado do conto 'Samhain')
Rompi o bloqueio de escritor dolorosamente, como um rio que rompe uma represa e se escalavra nas pedras que carrega no seio de seu jorro.
Ao menos escritor está vivo, enquanto todo o resto se mortifica a espera de renascer...
p.s. as fotos que ilustram este fragmento ainda não existem. existirão, quiçá, um dia, se ele for levado em frente.
UPDATE:
Embora tenha trabalhado em algumas anotações mais neste conto, revisado algumas partes (não publicadas) e refinado algumas idéias, ainda não tenho nada novo para publicar. De qualquer forma, o trabalho não está abandonado. A seu tempo Samhain verá a luz, quando for o seu momento.
UPDATE2:
Resolvi batizar este fragmento como "Alma e o quarto escuro", a partir das observações carinhosas e encantadoras da leitora Dora Nascimento. Agora ele tem vida própria, é uma obra em si, embora faça parte também do conto Samhain (do mesmo modo que vários contos reunidos podem transformar-se em um romance).
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