Sobre a vida própria do fragmento de "Samhain"
Reproduzo abaixo, na íntegra, a encantada e encantadora missiva:
Samhain (fragmento) – quase uma fábula de sutil erotismo, que começa com um segredo em suspense e termina com um suspense segregado.
Foi assim:
O abri numa tarde quente de maio, num ciber-café lotado de adolescentes que jogavam aqueles games, todos infernalmente barulhentos.
“(...) Alma respirou fundo, parada frente à porta, mordendo os lábios.”.
Eu fechei os olhos e disse:
“Não dá pra ser agora”.
No final do expediente o escritório ainda era todo movimento, e no computador onde trabalho, voltei a abri-lo novamente.
Vozes, risadas, telefones tocando em alucinados e irritantes estilos...
Alma com a sua respiração em suspenso, uma história por acontecer...
Voltei a fechar, telefone para mim.
Pela terceira vez naquele dia eu o abri e imprimi.
Com ele impresso nas minhas mãos, estava segurando os papéis nas mãos, quando alguém me pediu para ir até a videoteca.
Dobrei-o adiando Alma mais uma vez, fiz o que me pediram, e fui embora dali o mais rápido possível.
E Alma lá, estática, respirando fundo, parada frente à porta, mordendo os lábios.
Peguei-o e guardei dobrado o suficiente para caber dentro da minha bolsa.
Na parada do ônibus, toquei nos papéis, cinco páginas guardavam a continuação de Alma. Fui para debaixo de um poste e retirei-o da bolsa, desdobrei os papéis, e lá estava Alma, à espera de que eu a deixasse soltar a funda respiração. Não, a luz de mercúrio do poste me ofuscava. Dobrei os papéis adiando tudo mais uma vez.
Dentro do ônibus, retirei novamente os papéis, e Alma já havia, em uma frase, passado toda aquela tensão dela para mim.
Desisti dali também.
Peguei o livro das “Fadas no Divã” – psicanálise boa e pura – e corri os olhos nele, mas só pensava em Alma e sua respiração suspensa e presa nos papéis e na minha demora em retornar à sua história que estava preste a acontecer.
A ansiedade faz tudo parecer uma eternidade, mas eu enfim cheguei em casa.
Aí fiz assim:
Larguei a ansiedade descuidadamente sobre o pufe gigante.
Tomei um banho, e me alimentei.
Ascendi um digestivo, um incenso e a luminária.
Retirei aqueles papéis da bolsa pela terceira e última vez naquela noite. Apaguei todas as luzes da casa.
Deitei no sofá-cama e finalmente o li, voltando a dar vida a Alma, que ainda continuava a morder os lábios numa suspensa e funda respiração.
Tenho agora duas impressões e uma constatação pretensiosamente minha.
1 – Alma, apesar do temor, entregou-se à excitação no instante em que “aproximou a mão muito levemente, incerta, da maçaneta...” e se assustou,
com a facilidade com que a porta se abriu ao seu desejo mesclado de temor, materializando aquela excitação dentro daquele quarto escuro.
Ela estava lá!
A incerteza dera abertura a uma frágil, mas firme convicção.
2 – Sméagan é um não humano – apesar de só descobrir isso na última frase – ainda assim, não havia descrição alguma de que fosse um humano normal. O tom tenso com que a história tem desde o início, é que deixa um sutil eco de anormalidade naquele encontro.
Depois quando o segredo é parcialmente revelado na última frase, ficou no ar do meu imaginário o que poderá vir a ser um não-humano.
Na minha cabecinha fabulosa pairaram elfos, faunos, gnomos, duendes...
O vi como um elfo.
E Alma – que agora eu via com mais nitidez dentro de formas imberbes de mulher que trás ainda latente sua sensualidade – firme na sua frágil certeza de querer se entregar a Sméagan, me diz:
“Ele nem sequer era humano (...)”.
Mas depois, Alma ficou me acalentando:
“Ao menos ele não é humano (...)”.
3 – Para mim – muito pretensiosamente individual essa minha opinião pode parecer, e é – o conto está findo.
Quando tu iniciaste a primeira frase com “(...) e fechou a última frase com (...)”, deixaste – ao menos para mim – todo um mistério a ser desvendado pelo imaginário do leitor.
Porque é um conto que tem um quê de fábula de sutil erotismo, e que começa com um segredo em suspense e termina com um suspense segregado.
L-I-N-D-O!
Um cheiro de manjericão adentrou por toda a casa, como uma confirmação.
P.S.:
1- Acho que se o conto for continuado, eu ainda não sei se vou querer ler.
Os personagens, às vezes, simplesmente se calam, se encerram, e se não os deixamos em paz, eles talvez voltem distorcidos. Salvo quando querem voltar à tona do imaginário do seu criador. Ai não tem jeito, tem que continuar.
Desculpe-me, mas eu jamais vou deixar de te dizer o que sinto e o que vem do meu agitado coração, mesmo que eu me arrependa no instante seguinte – e já tarde demais – após clicar em “enviar”.
A propósito, Sméagan me apareceu como um elfo desejável e amedrontador, e talvez por isso mesmo, ao menos sua alma, é humana.
2– Se puderes desculpar essas minhas levianas interpretações, basta me responder dizendo que sorriu.
3- Quando virei uma das páginas do caderno em que escrevia essa carta-comentário, subitamente me apareceu essa receita de “Pão Rápido”, que gosto de fazer para servir aos amigos:
“Receita de Pão Rápido”.
Ingredientes:
2/1/2 xícaras (chá) de farinha de trigo especial (aquela sem fermento)
1 xícara (chá) de açúcar (da sua preferência, mascavo... etc)
1 colher (sopa) rasa de fermento comum (aqueles de bolo mesmo).
1 pitada de sal
1 xícara de castanha ralada (ou qualquer outro recheio que der na telha, uvas passas...)
1 copo (250ml) de leite (temperatura ambiente)
1 copo (250ml) de óleo (também da sua preferência, girassol...)
3 ovos inteiros ligeiramente mexidos (também em temperatura ambiente)
Modo de preparar:
Bom para fazer nas horas do dia em que o sol ainda está frio.
Se não tiver sol, antes do meio-dia.
Bater todos os ingredientes líquidos no liquidificador.
Numa tigela, adicionar todos os ingredientes secos.
Despejar o conteúdo liquido sobre o seco, pegar dois garfos e mexer delicadamente, até que tudo se torne homogêneo, enquanto isso, vá adicionando a energia boa de estar produzindo um alimento, mesmo que seja só para você.
Levar ao forno pré-aquecido em forma (que pode ser refratária) untada, uma temperatura de 180° por + ou – 45minutos, ou até dourar.
Pode espetar com um palito, como se faz com os bolos.
Pode comer na hora que sair do forno, mas ele estará com a consistência de um bolo. Mas se der para esperar até o fim do dia, já estará com a consistência de pão.
O nome é Pão Rápido porque não precisa esperar a massa crescer.
Bom apetite!
Esta carinhosa e apaixonada mensagem da leitora Dora me fez pensar um bocado e lembrar de algumas discussões e idéias sobre contos e fragmentos que venho tendo aqui, alí e acolá. Penso que o fragmento é quase um estilo literário em sí -- tendo sido influenciado por uns "fragmentistas" por aí -- e como tal, merece o reconhecimento como obra acabada, mesmo que carregue o nome de algo que parece incompleto. O fragmento pode levar no seio uma incompletitude, mas se o faz, é porquê nisso também imita a vida que por vezes retrata.
Posto isso, fiquei a pensar com meus botões o que fazia com este fragmento benquisto. Assumí-lo como um fragmento por si só e arrancá-lo do conto Samhain, no qual ainda estou trabalhando? Não. Isso não. Abandonar o conto e reconhecê-lo encerrado neste fragmento? Nem pensar! Samhain é muito mais do que isso! Deixar, então, a coisa como está? Talvez não...
Por fim, decidi tomar o caminho do meio, que contempla os amantes do fragmento e do conto. Continuo a trabalhar no conto Samhain (embora a correria dos últimos dias tenha me afastado dele), e batizo este fragmento, que agora tem sua vida própria reconhecida, como "Alma e o quarto escuro". Continuará fazendo parte do conto, mas também tem existência própria, e cada um o lerá como preferir.
E assim é, e assim será. Para os que ainda não leram, aqui está "Alma e o quarto escuro". Quanto ao conto Sahmain, continuo trabalhando nele.
Em tempo,
vou experimentar a receita assim que puder, Dora. :D
p.s. Para fazer justiça à minha persistência em manter o trabalho no conto Samhain, publicarei em breve mais um fragmento dele -- sua parte inicial -- como uma forma de dar satisfação a respeito de algum andamento literário deste Cluracão (que até agora não publicou a quinta parte de O Cavaleiro e o Dragão para continuar a fábula em fragmentos no Overmundo).
Marcadores: alma, contos, escrever, fragmentos, quarto escuro, samhain
5 Comments:
Daniel,
Adorei a noticia.
Agora sim, confirma-se em mim o conto - ou fragmento de um conto - como findo.
Obrigada pelas carinhosas palavras de agradecimento, eu relamente li o conto apaixonadamente envolvida.
Mas, meu bichinho, precisava postar até os PS's e a receita do pão?
Tudo bem vai... Bastante pessoas poderão aprender a receita do pão.
Levei um susto bom, achei que você ia dar um jeito qualquer e só colocar o comentário. Enfim, agora é tarde e Inês é morta, e frente à porta, existirá para sempre uma Alma entrando excitada e amedrontada num quarto escuro e convidativo pela mesma ansia de se saciar um desejo, se não por amor, por aventura, desvelo, ou aguçadíssima vontade.
Lerei o conto Samhain com uma nova curiosa paixão.
Publiquei coisa nova lá no overmundo hoje, vai lá...
Te abraço,
E mais uma coisa:
Relendo a receita de pão descobri uma erro e um esquecimento.
Nos ingredientes são 2/1/2 xícaras de farinha de trigo.
No modo de fazer:
Depois da massa pronta, untar uma forma (que pode ser refratária) e só então, claro, levar ao forno.
Te abreço de novo,
Dora
Que bom que gostou, Dora. :D
Pensei em editar o comentário, publicar-lhe apenas umas partes, mas depois decidi que ele não seria o mesmo comentário se fosse editado. Ele é obra completa, com receita de pão e tudo. :)
E por falar em receita de pão, vou tentar ajeitar lá a receita conforme você me orientou. :)
Abraços do Verde.
O que eu não entendi é se a colocação na forma acontece antes ou depois da mistura dos ingredientes secos com os líquidos...
Me esclarece isso, Dorinha?
Abraços do Verde.
Então Daniel,
Depois de tudo bem homogenizado você unta uma forma, polvilha com farinha de trigo, ou de rosca - fica com uma casquinha crocante - e só enão leva ao forno pré-aquecido e blá, blá...
Viu, tô até te liberando meus pequenos segredinhos.
Deixando a gastronomia - assunto delicioso, principalmente se você tá de larica - vamos para a literatura.
Escrevi mais um comentário sobre Alma e o quarto escuro, só tô em dúvida onde postar, se aqui ou no overmundo.
Beijinho de pão quantinho no rosto frio de ,amhã cedinho.
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