30 de mai. de 2007

Sobre a vida própria do fragmento de "Samhain"

Recebi hoje um gracioso comentário/email de Dora Nascimento, colega overmundana e atenciosa leitora, a respeito do fragmento do conto Samhain, publicado aqui no Caderno do Cluracão há uns tempos atrás.

Reproduzo abaixo, na íntegra, a encantada e encantadora missiva:

Samhain (fragmento) – quase uma fábula de sutil erotismo, que começa com um segredo em suspense e termina com um suspense segregado.

Foi assim:

O abri numa tarde quente de maio, num ciber-café lotado de adolescentes que jogavam aqueles games, todos infernalmente barulhentos.

“(...) Alma respirou fundo, parada frente à porta, mordendo os lábios.”.

Eu fechei os olhos e disse:

“Não dá pra ser agora”.

No final do expediente o escritório ainda era todo movimento, e no computador onde trabalho, voltei a abri-lo novamente.

Vozes, risadas, telefones tocando em alucinados e irritantes estilos...

Alma com a sua respiração em suspenso, uma história por acontecer...

Voltei a fechar, telefone para mim.

Pela terceira vez naquele dia eu o abri e imprimi.

Com ele impresso nas minhas mãos, estava segurando os papéis nas mãos, quando alguém me pediu para ir até a videoteca.

Dobrei-o adiando Alma mais uma vez, fiz o que me pediram, e fui embora dali o mais rápido possível.

E Alma lá, estática, respirando fundo, parada frente à porta, mordendo os lábios.

Peguei-o e guardei dobrado o suficiente para caber dentro da minha bolsa.

Na parada do ônibus, toquei nos papéis, cinco páginas guardavam a continuação de Alma. Fui para debaixo de um poste e retirei-o da bolsa, desdobrei os papéis, e lá estava Alma, à espera de que eu a deixasse soltar a funda respiração. Não, a luz de mercúrio do poste me ofuscava. Dobrei os papéis adiando tudo mais uma vez.

Dentro do ônibus, retirei novamente os papéis, e Alma já havia, em uma frase, passado toda aquela tensão dela para mim.

Desisti dali também.

Peguei o livro das “Fadas no Divã” – psicanálise boa e pura – e corri os olhos nele, mas só pensava em Alma e sua respiração suspensa e presa nos papéis e na minha demora em retornar à sua história que estava preste a acontecer.

A ansiedade faz tudo parecer uma eternidade, mas eu enfim cheguei em casa.

Aí fiz assim:

Larguei a ansiedade descuidadamente sobre o pufe gigante.

Tomei um banho, e me alimentei.

Ascendi um digestivo, um incenso e a luminária.

Retirei aqueles papéis da bolsa pela terceira e última vez naquela noite. Apaguei todas as luzes da casa.

Deitei no sofá-cama e finalmente o li, voltando a dar vida a Alma, que ainda continuava a morder os lábios numa suspensa e funda respiração.

Tenho agora duas impressões e uma constatação pretensiosamente minha.

1 – Alma, apesar do temor, entregou-se à excitação no instante em que “aproximou a mão muito levemente, incerta, da maçaneta...” e se assustou,

com a facilidade com que a porta se abriu ao seu desejo mesclado de temor, materializando aquela excitação dentro daquele quarto escuro.

Ela estava lá!

A incerteza dera abertura a uma frágil, mas firme convicção.

2 – Sméagan é um não humano – apesar de só descobrir isso na última frase – ainda assim, não havia descrição alguma de que fosse um humano normal. O tom tenso com que a história tem desde o início, é que deixa um sutil eco de anormalidade naquele encontro.

Depois quando o segredo é parcialmente revelado na última frase, ficou no ar do meu imaginário o que poderá vir a ser um não-humano.

Na minha cabecinha fabulosa pairaram elfos, faunos, gnomos, duendes...

O vi como um elfo.

E Alma – que agora eu via com mais nitidez dentro de formas imberbes de mulher que trás ainda latente sua sensualidade – firme na sua frágil certeza de querer se entregar a Sméagan, me diz:

“Ele nem sequer era humano (...)”.

Mas depois, Alma ficou me acalentando:

“Ao menos ele não é humano (...)”.

3 – Para mim – muito pretensiosamente individual essa minha opinião pode parecer, e é – o conto está findo.

Quando tu iniciaste a primeira frase com “(...) e fechou a última frase com (...)”, deixaste – ao menos para mim – todo um mistério a ser desvendado pelo imaginário do leitor.

Porque é um conto que tem um quê de fábula de sutil erotismo, e que começa com um segredo em suspense e termina com um suspense segregado.

L-I-N-D-O!

Um cheiro de manjericão adentrou por toda a casa, como uma confirmação.

P.S.:

1- Acho que se o conto for continuado, eu ainda não sei se vou querer ler.

Os personagens, às vezes, simplesmente se calam, se encerram, e se não os deixamos em paz, eles talvez voltem distorcidos. Salvo quando querem voltar à tona do imaginário do seu criador. Ai não tem jeito, tem que continuar.

Desculpe-me, mas eu jamais vou deixar de te dizer o que sinto e o que vem do meu agitado coração, mesmo que eu me arrependa no instante seguinte – e já tarde demais – após clicar em “enviar”.

A propósito, Sméagan me apareceu como um elfo desejável e amedrontador, e talvez por isso mesmo, ao menos sua alma, é humana.

2– Se puderes desculpar essas minhas levianas interpretações, basta me responder dizendo que sorriu.

3- Quando virei uma das páginas do caderno em que escrevia essa carta-comentário, subitamente me apareceu essa receita de “Pão Rápido”, que gosto de fazer para servir aos amigos:

“Receita de Pão Rápido”.

Ingredientes:

2/1/2 xícaras (chá) de farinha de trigo especial (aquela sem fermento)

1 xícara (chá) de açúcar (da sua preferência, mascavo... etc)

1 colher (sopa) rasa de fermento comum (aqueles de bolo mesmo).

1 pitada de sal

1 xícara de castanha ralada (ou qualquer outro recheio que der na telha, uvas passas...)

1 copo (250ml) de leite (temperatura ambiente)

1 copo (250ml) de óleo (também da sua preferência, girassol...)

3 ovos inteiros ligeiramente mexidos (também em temperatura ambiente)

Modo de preparar:

Bom para fazer nas horas do dia em que o sol ainda está frio.

Se não tiver sol, antes do meio-dia.

Bater todos os ingredientes líquidos no liquidificador.

Numa tigela, adicionar todos os ingredientes secos.

Despejar o conteúdo liquido sobre o seco, pegar dois garfos e mexer delicadamente, até que tudo se torne homogêneo, enquanto isso, vá adicionando a energia boa de estar produzindo um alimento, mesmo que seja só para você.

Levar ao forno pré-aquecido em forma (que pode ser refratária) untada, uma temperatura de 180° por + ou – 45minutos, ou até dourar.

Pode espetar com um palito, como se faz com os bolos.

Pode comer na hora que sair do forno, mas ele estará com a consistência de um bolo. Mas se der para esperar até o fim do dia, já estará com a consistência de pão.

O nome é Pão Rápido porque não precisa esperar a massa crescer.

Bom apetite!

Esta carinhosa e apaixonada mensagem da leitora Dora me fez pensar um bocado e lembrar de algumas discussões e idéias sobre contos e fragmentos que venho tendo aqui, alí e acolá. Penso que o fragmento é quase um estilo literário em sí -- tendo sido influenciado por uns "fragmentistas" por aí -- e como tal, merece o reconhecimento como obra acabada, mesmo que carregue o nome de algo que parece incompleto. O fragmento pode levar no seio uma incompletitude, mas se o faz, é porquê nisso também imita a vida que por vezes retrata.

Posto isso, fiquei a pensar com meus botões o que fazia com este fragmento benquisto. Assumí-lo como um fragmento por si só e arrancá-lo do conto Samhain, no qual ainda estou trabalhando? Não. Isso não. Abandonar o conto e reconhecê-lo encerrado neste fragmento? Nem pensar! Samhain é muito mais do que isso! Deixar, então, a coisa como está? Talvez não...

Por fim, decidi tomar o caminho do meio, que contempla os amantes do fragmento e do conto. Continuo a trabalhar no conto Samhain (embora a correria dos últimos dias tenha me afastado dele), e batizo este fragmento, que agora tem sua vida própria reconhecida, como "Alma e o quarto escuro". Continuará fazendo parte do conto, mas também tem existência própria, e cada um o lerá como preferir.

E assim é, e assim será. Para os que ainda não leram, aqui está "Alma e o quarto escuro". Quanto ao conto Sahmain, continuo trabalhando nele.


Em tempo,
vou experimentar a receita assim que puder, Dora. :D


p.s. Para fazer justiça à minha persistência em manter o trabalho no conto Samhain, publicarei em breve mais um fragmento dele -- sua parte inicial -- como uma forma de dar satisfação a respeito de algum andamento literário deste Cluracão (que até agora não publicou a quinta parte de O Cavaleiro e o Dragão para continuar a fábula em fragmentos no Overmundo).

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5 Comments:

Blogger Dora nascimento said...

Daniel,

Adorei a noticia.
Agora sim, confirma-se em mim o conto - ou fragmento de um conto - como findo.
Obrigada pelas carinhosas palavras de agradecimento, eu relamente li o conto apaixonadamente envolvida.
Mas, meu bichinho, precisava postar até os PS's e a receita do pão?
Tudo bem vai... Bastante pessoas poderão aprender a receita do pão.
Levei um susto bom, achei que você ia dar um jeito qualquer e só colocar o comentário. Enfim, agora é tarde e Inês é morta, e frente à porta, existirá para sempre uma Alma entrando excitada e amedrontada num quarto escuro e convidativo pela mesma ansia de se saciar um desejo, se não por amor, por aventura, desvelo, ou aguçadíssima vontade.
Lerei o conto Samhain com uma nova curiosa paixão.
Publiquei coisa nova lá no overmundo hoje, vai lá...
Te abraço,

5/30/2007 12:25:00 PM  
Blogger Dora nascimento said...

E mais uma coisa:
Relendo a receita de pão descobri uma erro e um esquecimento.
Nos ingredientes são 2/1/2 xícaras de farinha de trigo.
No modo de fazer:
Depois da massa pronta, untar uma forma (que pode ser refratária) e só então, claro, levar ao forno.
Te abreço de novo,
Dora

5/30/2007 12:30:00 PM  
Blogger Daniel Duende said...

Que bom que gostou, Dora. :D

Pensei em editar o comentário, publicar-lhe apenas umas partes, mas depois decidi que ele não seria o mesmo comentário se fosse editado. Ele é obra completa, com receita de pão e tudo. :)

E por falar em receita de pão, vou tentar ajeitar lá a receita conforme você me orientou. :)

Abraços do Verde.

5/31/2007 06:04:00 PM  
Blogger Daniel Duende said...

O que eu não entendi é se a colocação na forma acontece antes ou depois da mistura dos ingredientes secos com os líquidos...

Me esclarece isso, Dorinha?

Abraços do Verde.

5/31/2007 06:11:00 PM  
Blogger Dora nascimento said...

Então Daniel,

Depois de tudo bem homogenizado você unta uma forma, polvilha com farinha de trigo, ou de rosca - fica com uma casquinha crocante - e só enão leva ao forno pré-aquecido e blá, blá...
Viu, tô até te liberando meus pequenos segredinhos.
Deixando a gastronomia - assunto delicioso, principalmente se você tá de larica - vamos para a literatura.
Escrevi mais um comentário sobre Alma e o quarto escuro, só tô em dúvida onde postar, se aqui ou no overmundo.
Beijinho de pão quantinho no rosto frio de ,amhã cedinho.

6/05/2007 11:21:00 AM  

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