Quando enfim choveu nas terras do Céu em Chamas: Lúti
Encostou o focinho na janela. Desde a noite que descobriu que era gente e gato, sonhadora e sonho, gostava de chamar seu nariz de focinho. A janela estava fria, mas o frio era gostoso. Através da janela borrada pela chuva só distinguia o mato escuro, as luzes da cidade à distância -- um brilho esmaecido e indistinto -- e o céu que tomara agora uma luminosidade entre o laranja e o vermelho. A noite parecia iluminada pela chuva, ou para a chuva, ou coisa assim. Tinha a sensação de que era algo realmente especial.
Ficou pensando nas coisas que havia escutado por trás das portas nas últimas semanas. Lúti gostava muito de escutar por trás das portas -- desde criança, não era coisa nova, ou coisa que ela começara a fazer depois que descobriu que podia virar gato. Escutara Sinasecht falando para a Baronesa sobre a chuva que viria, e coma chuva iria despertar um dragão e também romper as crisálidas de algumas pessoas...
Era tudo muito novo pra ela. Estar em Brasília, então ver seus velhos sonhos destroçados, o desespero de se ver sozinha em uma cidade estranha, e então todas as coisas que aconteceram depois. A descoberta do outro mundo, e de sua verdadeira natureza. E então a casa da colina, Erick, Dairean, Sinasecht e seus sussurros e suas mãos que ela sabia que eram frias sem mesmo ter que encostar nelas, Otto e todas as outras fadas que ela sabia que existiam por ter ouvido falar, ou mesmo sem ter ouvido falar. O mundo, que pareceu tão maior quando ela entrou naquele ônibus para Brasília crescera em grandes e assustadoras ondas desde então, e não parava de crescer. E lá longe, em algum lugar, ela sentia que esta chuva estava novamente alargando suas fronteiras. E ela se sentia excitada e ao mesmo tempo assustada, porque essas coisas são sempre um pouco assustadoras. De repente sentiu-se muito pequena frente a tudo aquilo, e a chuva fina lá fora parecia rugir como uma tempestade, embora continuasse fina. Soube então, sem saber como sabia, que no Sonhar aquela chuva era uma tempestade.
E o Sonhar era a suprema vastidão que a chamava e a assustava ao mesmo tempo. E ela gostava disso. Sem vacilar, tomou a forma de gato e correu pelo quarto, pelo corredor, até a grande sala cheia de móveis que pareciam tão enormes agora, e ganhou o jardim depois de pular pelo janelão da sala que Seu Alcélio não havia fechado por algum motivo. Correu pela chuva, ouvindo ao mesmo tempo as gotas finas trazendo vida de volta pra este mundo e o rugido da tempestade que caía sobre o outro, e que parecia dizer alguma coisa que ela ainda não conseguia entender bem o que era. A curiosidade dos gatos a movia, e ela continou correndo na chuva, sem sequer saber para onde ia.
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