3 de mar. de 2009

Memórias de Yirrdyn Duirfel II

(Memórias do druída Yirrdyn Duirfel, rascunhadas em papiro duro ao longo de uma viagem pelas savanas do Ocidente Athasiano)

"Começou a nossa caminhada em direção ao destino. Enquanto meus companheiros de caminhada descansam depois de uma árdua caminhada e de mais uma batalha contra a morte, sento-me debaixo de uma destas árvores retorcidas para escrever minhas memórias nestes papiros que me foram providenciados pelo Venerável Púkpuk na última vila Halfling que estivemos. Muita coisa aconteceu nos últimos dias, e minha alma turbilhona em meio a todos os acontecimentos, mas vou tentar narrar com a serenidade das árvores que me cercam neste anoitecer todos as aventuras que tivemos desde que deixamos o verde platô onde caímos neste mundo estranho. Vou me aproveitar da minha estranha falta de sono -- possivelmente obra deste manto verde que agora se crava em minhas costas como uma orquídea nos flancos de um carvalho -- para escrever estas memórias enquanto espero pelo venerável druída PúkPúk, que me adiantou que teríamos uma importante conversa hoje.

Que a minha ansiedade e as paixões que fervilham em meu coração não desviem minha pena...


Chegando à Aldeia dos Halflings

Quando escreví minhas últimas rememorações, estávamos a caminho de uma vila de halflings onde PúkPúk havia dito que encontraríamos abrigo e aprenderíamos muitas coisas. Ele estava certo, mas creio que nem ele imaginava o que nos esperava por lá. O último dia de caminhada em meio à frondosa floresta do platô foi tranquilo, e ao nos aproximarmos da vila já podíamos entrever suas construções simples, nada mais do que tendas rústicas de um tecido esverdeado, construídas entre as árvores. De fato, só pudemos avistá-las muito de perto, pois a arte destes halflings não apenas em construir em harmonia com a floresta que os cerca e abraça, mas também de ocultar seus lares dos olhares estranhos, é provavelmente lendária. A noite já se adiantava quando chegamos à aldeia e nosso venerável guia PúkPúk decidiu, após uma rápida conversa com os outros halflings da vila, que deveríamos acampar do lado de fora.

Tão logo nos fizemos confortáveis, algo muito estranho aconteceu. Um homem estranho, vindo aparentemente de lugar nenhum, surgiu flutuando sobre nossa fogueira. Tinha a pele trigueira e a cabeça raspada, ou talvez nunca tivesse tido cabeleira, e da testa castanha nos observava, por cima de seu rosto duro que ria com sarcasmo, um terceiro olho. Tudo aconteceu muito rápido depois disso. O homem, usando aquilo que depois descobrí ser "a vontade e o caminho", um tipo de poder místico que vem da mente e não da magia arcana, levantou uma gigantesca árvore para ameaçar PúkPúk e a nós. O venerável druída, por sua vez, vestiu a forma de um enorme gigante de pedra, amedontrando o nosso estranho visitante, que partiu deixando a árvore desterrada para trás. Sentí muita tristeza pela árvore cuja vida foi ceifada por pura crueldade e agressividade, mas confesso ter ficado aliviado ao ver que mais estrago não foi feito. Mais tarde, na mesma noite, PúkPúk nos explicou que aquele era um dos homens de terras distantes que estariam a nos caçar dali em diante. Logo, nossa presença na vila representava perigo para os halflings que lá habitavam. Antes mesmo de adentrar a aldeia halfling que era nosso destino nesta caminhada, já descobrimos que não teríamos tempo para descansar e aprender mais sobre este lugar.


A Noite é Longa na Vila dos Pequeninos

Depois da terrível visita, abandonamos nosso acampamento na orla da vila e pedimos abrigo para os pequeninos. Pude perceber então que, apesar da aparência mais rústica e primitiva desta aldeia em relação à anterior, seus moradores nos eram mais amistosos. Se na primeira vila, o clima entre eles e nós era de hostilidade velada que podia a qualquer momento se transformar em agressão, nesta vila eles se limitaram a nos evitar e nos olhar curiosos a uma distancia segura. Pelo que me parece, PúkPúk se comunicava bem melhor com os halflings desta vila do que com os halflings da vila anterior, embora me pareça que sua moradia mais frequente seja a segunda e não a primeira, mas o venerável druída teve que se valer de sua autoridade druídica em sua conversa com alguém que parecia ser o líder da vila para que pudéssemos lá descansar. E de fato, tal autoridade surtiu um efeito que certamente agradou a meus companheiros. Primeiro recebemos uma lauta refeição, com porções generosas de pratos da culinária simples dos aldeões halflings. Depois de satisfeitos em nosso apetite de caminhante, fomos instalados em uma ampla tenda, aparentemente mais ampla do que aquelas usadas como moradia pelos halflings da aldeia, cujo chão era feito de sólida cerâmica. Se se tratava de um luxo, ou de uma precaução contra alguma coisa que nos escapava à compreensão, ainda não sei. De qualquer forma, meus companheiros se acomodaram bem enquanto travávamos a última conversa da noite com PúkPúk. Foi então que o venerável druída nos disse que teríamos que partir no dia seguinte, e que teríamos dois caminhos entre os quais escolher. O primeiro era mais seguro, porém mais longo, e seguia através de uma rampa natural que nos levaria até o pé do plateau. O segundo, mais curto porém mais perigoso, nos levaria direto através do precipício de mais de 300 metros que nos separava das terras abaixo do platô. A decisão sobre o caminho a tomar ficou no ar, mas na manhã seguinte a decisão seria tomada à nossa revelia, e felizmente seria uma sábia decisão, tomada pelo venerável PúkPúk.

Durante a refeição, por pura curiosidade, retirei o mapa Githian-ki de dentro da mochila que encontrei dias antes dentro do enorme barco voador. Por pouco esta cúpida decisão não nos causou problemas, pois descobrí se tratar de um mapa mágico, cujas imagens saltavam magicamente do papel para formar uma imagem com altura, largura e profundidade. Parecia se tratar de algum tipo de mapa de estrelas, ou de esferas, ou de planos. O fechei tão rápido quanto o abri, para evitar problemas, mas minha curiosidade ficou atiçada e, espero eu, aprendi uma lição importante sobre os riscos de se bolir com os achados da viagem na presença dos habitantes deste mundo que, por bons motivos, temem e odeiam a magia arcana. De fato, que idéia estúpida foi aquela, Duirfell! Certas coisas devem ser feitas longe de quaisquer olhares. Será que agora aprendí isso? De qualquer forma, fica a impressão de que este mapa ao mesmo tempo nos traz perigo e uma excelente moeda de negociação com os Githian-ki. Temo que iremos descobrir cedo ou tarde sobre quão boa é a moeda, e quanto perigo ela nos traz...

Mas me desvio de minha narrativa, e ainda há muito a narrar. Na mesma conversa em que nos falou sobre os dois caminhos que teríamos a seguir, PúkPúk também nos falou sobre o terrível assobio que ouvimos na batalha contra os terríveis macacos de dois braços, e que voltamos a ouvir quando o malévolo visitante arrancou a árvore de sua terra nutriz para nos ameaçar. Tratava-se "da vontade e do caminho", como já falei antes. Uma forma estranha de poder que vem puramente da mente, e que não é nem magia arcana nem dom divino. Este é um mundo estranho com coisas estranhas, mas que me mostra cada dia mais sobre o quanto eu não sei, e sobre o quanto ainda preciso aprender e descobrir em meu caminho rumo a meu destino.

A última frase de PúkPúk antes de nos deixar sozinhos com nossos pensamentos e com nosso cansaço na tenda ficou ecoando em meus ouvidos, ao mesmo tempo me assustando e me excitando com um sentimento de que coisas grandes e temíveis nos esperavam. O venerável druída disse que "estávamos indo em direção às terras onde o mal começou"...

Farto do silêncio exterior, interrompido apenas pelo passar das páginas do estranho livro do ogrillion e pelos ruídos feitos pelo resto de nosso grupo que descansava ou ocupava-se de seus afazeres -- um quase silêncio que apenas tornava mais ruidosos os meus pensamentos -- decidi deixar a tenda para me deitar entre as árvores e comungar com a natureza e com a vida. Caminhei por alguns minutos entre as árvores depois de deixar a tenda, ora observando a aldeia que dormia -- com excessão dos bem escondidos sentinelas que montavam guarda -- ora me voltando para a beleza alienígena, forte e ligeiramente melancólica da floresta que nos abraçava. Por fim, parei debaixo de uma das frondosas senhoras árvores e me pus a conversar com um pequeno animal espinhoso, que me contou sobre sua comida, sobre os predadores que temia, e sobre a escassez de água e chuva nestas terras. Agradecí ao animal, que se ocupava agora de buscar comida, e me voltei para a frondosa árvore. Com ela também conversei sobre o tempo e sobre o clima, e tentei entender melhor a vida vegetal daquelas terras. A mesma árvore me contou que o terrível visitante ainda espreitava, e que outros como ele poderiam estar nas redondezas. Agradecí então à árvore, e pedi permissão para me deitar entre suas raízes, e me deitei então vestido com o céu e com a mata para meditar e me conectar com a vida e com a natureza. Meditei até o adormecimento, e quando adormeci tive sonhos intensos, poderosos e... proféticos.


O Sonho em Meio à Floresta

Naquela noite sonhei com distâncias e saudades. Sonhei com o belo lago de águas que curam e refrescam, e com o arvoredo salpicado de neve, e com a mais bela de todas as árvores que já conheci. Sonhei com Sylvia. E ao mesmo tempo me senti feliz em rever seus olhos tão profundos quanto suas raízes e seu corpo esguio a dançar no vento, e triste, imensamente triste, pela gigantesca distância que nos separava. Tão grande que eu poderia levar vidas inteiras, vestindo a forma do homem ou vestindo a forma do pássaro, para conseguir vencer todas as lonjuras que nos separam. Tão longe, porém ainda tão perto, em meu peito, eu pude ver e sentir Sylvia, e foi bom e doloroso. Sylvia das verdes folhas tripartidas que acariciavam meu rosto trazidas pelo vento, em mergulho incerto, enquanto eu dormia entre suas raízes. Sylvia que tomava a forma de mulher e corria e brincava e amava como ninguém nunca o fez, e nunca fará, e que para sempre será Sylvia, como foi antes de eu nascer, e como continuará sendo depois que minha forma passageira for varrida da existência pelo Movimento. A Sylvia que amo e deixei, pois assim mandou o Movimento, que é ainda maior e mais forte do que o amor, esta coisa de homens. Sylvia que me ama, e que vai além deste amor, como sua raízes que mergulham infintamente mais fundo do que meus pés que mal tocam a terra que nos nutre. Sylvia...

Sonhei com Sylvia, e em sonho conversei com ela, e sei que este era um sonho real. Pedi desculpas, infinitas e inúteis e desnecessárias desculpas por ter partido, e ela me entendeu, como sempre me entendeu muito mais do que pude me entender, em sua infinita sabedoria de árvore. Prometi que voltaria um dia, e ela apenas sorriu, sabendo que promessas são apenas promessas, e que o Movimento é o que nos leva e nos traz. Mas sinto que no fundo, lá no fundo de seu coração verde, ela também anseia por minha volta. Disse a ela que, não importa quanto tempo levasse, eu voltaria, e ela me disse que ela tinha todo tempo da existência, um tempo que me faltava e me escorria a cada momento. E eu ainda assim insistí que voltaria, e que trilhava o caminho do druída em busca de transcender até mesmo o tempo, e me tornar o servo último e mais perfeito do Movimento, e que ainda estaria com ela. Ela sorriu. Tolo eu, sábio eu, druida bardo apaixonado... e ela apenas sorriu e se foi, no sonho verdadeiro que a mata me trouxe e levou embora...

Sonhei então com dias. Dias que vinham um após o outro. Dias que se seguiam infinitamente, se sucediam, dia após dia após dia. E sonhei com o céu. Sonhei com o sol, que a cada dia levantava e depois se deitava para dar lugar à noite. O sol que mudou lentamente de cor, tingindo o céu, até se tornar negro. Sonhei com o cataclisma, com a abominável desgraça que foi trazida sobre este mundo pelos terríveis homens e dragões, sedentos de poder arcano, que destruíram este lugar, feriram a Vida e a Natureza e desequilibraram o Movimento. Sonhei com o desastre, e somado à distância e ao tempo, o desastre feriu minha alma ainda mais.

E foi então que minha alma ferida, errando pelos campos do sonho, deparou-se com aquele que a feriu. O terrível visitante estava lá, a menos de um quilômetro de nós, aguardando, espreitando, tramando. O horror daquela visão me despertou, tomado em suores, e mal tive tempo de vestir minhas calças antes de correr de volta para a vila para avisar o venerável druida PúkPúk e meus companheiros de viagem sobre aquilo que tinha visto -- ao menos no que dizia respeito ao visitante que ora nos caçava. Mas ao chegar à vila, me deparando com os preparativos para nossa partida, com a decisão supreendente de PúkPúk de nos levar por ainda outro caminho além dos expostos na noite anterior, e com a estranha oferta que nos aguardava antes de partir, acabei não tendo tempo de relatar meus sonhos então...


O Presente dos Pequeninos

Antes de nossa partida, e aparentemente um tanto incerto de sua decisão, o líder da aldeia afirmou que nos daria um presente por nossa bravura, e em nome da corajosa empreitada a qual nos lançaríamos. Não explicou muito então, e o venerável PúkPúk nos disse apenas que se tratava de um presente diferente daquilo que estávamos acostumados. Disse que não era um presente como os do povo azul, seja qual for este povo, e que se tratava de uma forma de presente vivo, algo que os povos do oriente podiam vir a não considerar um presente. Disse também que o os halflings nos achavam exóticos e que o líder da aldeia estava contrariado em nos dar aquele presente -- por um lado não entendia de onde viemos ou quem somos, e por outro não conseguia entender por quê nos lançariamos na empreitada que nos aguardava -- mas mesmo assim decidira nos presentear. Acredito que mais uma vez havia ali a mão do venerável druida a nos ajudar por trás daquilo tudo.

Caminhamos por algum tempo, com o sol ainda nascendo, na companhia de PúkPúk, do líder da tribo e de mais uns 10 halflings por vários caminhos em meio à floresta fechada. Não se tratava de uma picada. Estranha e encantadoramente, mais parecia que as árvores haviam apenas crescido de tal forma a indicar um caminho -- um corredor -- entre elas. E este caminho nos levou até uma gruta repleta de ruínas. Neste momento o venerável PúkPúk me contou que o povo da aldeia havia perdido muito de seus preciosos conhecimentos -- uma geração se foi, e com ela o conhecimento -- e que agora este conhecimento estava morrendo. Eu quis muito, naquele momento, ter tempo de ficar e aprender todas estas coisas, e servir a minha função de elo entre os homens e a natureza, atravessando o tempo e buscando o equilíbrio. Mas não parece que seja aqui que o Movimento vai me levar agora, e então este foi apenas mais um desejo que ficou na beira do caminho. Um desejo pequeno, perto da minha vontade de partir para reencontrar Sylvia. E todos estes desejos ficam cada vez mais distantes conforme caminhamos rumo ao oriente.

O venerável druida também nos disse que nesta região podem ser encontradas várias outras ruínas dos antigos halflings, e que em muitas delas se pode encontrar "coisas" como as que nos serão presenteadas. Mas me admoestou que ao contrário dos presentes que nos seriam dados momentos depois, aquilo que encontraríamos nas outras ruínas poderia ser perigoso, dotado de vida, inteligência e desígnios próprios...

De qualquer forma, concluiu o druida, aquilo que receberíamos nos mudaria para sempre. Olhando agora para as raízes que se entranham em meu ombro e em meu pescoço, e para a forma como este manto está me transformando -- fazendo com que eu não tenha sono, e que hora tenha muita fome, hora pareça conseguir passar muito tempo sem beber ou comer -- eu acredito que o venerável PúkPúk esteja completamente certo. Não sei o que é isto que recebí, mas confio em quem me presenteou e, mais ainda, em quem me recomendou a aceitar o presente.

Quando adentramos as antesalas da gruta, fiquei maravilhado com as vistas de seu interior. As grutas pareciam ser enormes e complexas, embora delas tenhamos visto apenas as antesalas. Pareciam ter sido feitas com arte e seriedade, fruto de um conhecimento muito antigo que nunca foi deitado em papel e nunca será. Um conhecimento oral que está morrendo... e que talvez seja mantido apenas por algumas outras poucas pessoas, aqui e ali neste mundo abrasado pelo sol quase negro.

Água cristalina precipitava-se do teto, banhando as rochas, esculpindo-as e moldando-as de diversas formas -- formas que vão além dos dons que hoje tenho de esculpir e moldar as coisas naturais. Entre as rochas esculpidas, havia algumas que pareciam ter sido esculpidas na forma de grades. Aparentemente um criatório para algo. Aqui e alí se via cestas e sacos de algum tipo de farinha. De alguma forma, parecia ser um tipo de ração para o que quer que fosse alí cultivado, ou criado. E havia muitos, muitos mesmo, destes criatórios de pedra. Alguns eram tampados, enquanto outros estavam abertos. Alguns deles recebiam sol direto, através de passagens no teto da gruta, enquanto outros ficavam na escuridão dos cantos escuros. Havia seres, aparentemente mas não exatamente vegetais, que se agarravam às pedras nestes criatórios. Formas de vida que até então desconhecia, e que agora começo a conhecer pouco a pouco na minha própria carne, com o perdão do trocadilho.

A elfa foi a primeira a ser presenteada, e eu mal sabia para onde direcionar minha atenção -- para os criatórios com suas maravilhosas e intrigantes formas de vida ou se para o presente que ela receberia. Pude notar que ela recebeu duas frutas alongadas -- ou seriam vermes? -- de um dos halflings, que parece tê-la orientado a engolí-los. E foi com dificuldade que ela o fez, fazendo depois uma expressão que era um misto de desconforto e dor. Não tive tempo para atentar muito para sua reação, pois logo depois surgiu um dos halflings trazendo um estranho manto, vindo na minha direção.

E foi esta a primeira vez que ví o manto que agora -- vive -- em minhas costas. É um manto sem capuz feito de um tecido semelhante ao das tendas halflings, com o mesmo tom de verde profundo e rico. Parecia ter sido remendado e alongado para adequar-se ao meu tamanho, o que me fez pensar sobre a importância que alguém deve ter dado a me presentear este manto. Sobre o tecido, como que vivendo sobre o mesmo, havia uma forma de vinha, algo como uma trepadeira de finos e maleáveis filamentos que se entranhavam na trama do tecido e cobriam tanto o interior quanto o exterior da capa, fazendo com que ela ganhasse uma aparência ao mesmo tempo vegetal e estranha. Logo no primeiro momento pude ver que aquele era um manto de druída, ou assim apenas me pareceu, e muito me honrou este pensamento. Mas meus pensamentos honrosos foram interrompidos pelo halfling que, com a ajuda de PúkPúk, me orientou a remover o meu manto e minha blusa. Depois disso, fui orientado a me ajoelhar, e no último momento pensei sobre o estranho fato do manto não ter um fecho ou uma clavícula para afixá-lo. Mas não tive tempo de pensar muito sobre a falta de fecho do manto. Tão logo este foi colocado sobre meus ombros, os filamentos da vinha que cobria o manto começaram a se mover. Lenta mas inexoravelmente, os finos filamentos começaram a penetrar a minha pele, perfurando meu pescoço, minha nuca, minha espinha e meus ombros. A dor foi indizível, e eu fiz o que pude para não gritar -- sem sucesso. Quase tombei sobre minha barriga enquanto tentava reprimir os gritos, e durante todo o tempo, gentil porém dolorosamente, os filamentos da vinha continuavam penetrando e se misturando com as fibras de minha própria carne. Da mesma forma que começou, acabou, e fui deixado pelo halfling para tentar retomar a compostura perdida. O manto, que agora me parece tão animal quanto vegetal, sem ser exatamente nenhum dos dois, só foi começar a mostrar suas propriedades depois. Mas já desde aquele momento eu soube que outra forma de vida estava alí, e que sua companhia seria uma certeza por muito tempo. Alimentava-se de meu sangue, pelo que eu podia sentir, e também da luz do sol, como pude perceber depois. E ainda estou descobrindo o que me dá em troca.

Mal pude erguer o olhar para presenciar o presenteamento do Ogrillion. E se o fiz, minha dor teria se tornado menor, se tal coisa fosse possível, ante a dor à qual ele foi sujeitado para receber seu presente. Primeiro ele foi amarrado a uma árvore, e depois recebeu algo forte -- em grandes quantidades -- para beber. Mesmo assim, foi por pouco que não urrou de dor quando lhe cortaram os tendões com cortes secos e rápidos. Meus olhos cruzaram com os olhos da elfa, e partilharam a mesma perplexidade. Enquanto isso, um halfling trazia algo que lembrava um feixe de cipós, e os introduziu pelas feridas abertas no ogrillion. Algo me diz que a partir de um certo momento, os cipós também estavam entrando por conta própria, penetrando a carne do corpanzil de Grugik em busca de seu lugar entre tendões e músculos. Mais uma vez, o grande guerreiro lutava bravamente contra a dor e contra a própria afã de gritar, e quando as feridas foram curadas ele ainda aparentava sentir dor. Fomos deixados então, por um tempo, para nos reestabelecermos depois deste estranho presenteamento, e depois partimos em direção ao despenhadeiro.


Caminhando Pelas Árvores

Chegamos ao despenhadeiro ainda abalados e encantados com nossos presentes. Da beirada do platô, no belo mirante contraforteado por majestosas árvores que desafiavam o despenhadeiro, podíamos avistar as terras que se extendiam lá embaixo. A vegetação parecia bem diferente, mais esparsa, característica de uma região mais seca e com o solo mais forte. Uma primeira visão de como o terreno vai mudar conforme caminhamos. Do mirante era possível ver também enormes estruturas, aparentemente elevadores movidos por alguma força física ou desconhecida, construídos com uma engenharia que definitivamente não era a dos halflings. O venerável PúkPúk nos informou que não usaríamos os elevadores -- eram muito arriscados, e ele disse não confiar naquela engenharia -- mas que "caminharíamos através das árvores" para chegar lá embaixo.

Nos explicou então que com seus poderes iria nos transportar de uma árvore do despenhadeiro, através do verde e das redes de raízes que cruzam a terra, até outra árvore ao pé do paredão. Contou-nos que havia pedido permissão a estas árvores para esta viagem, e que por isso ela seria segura, mas que não poderia nos levar mais longe desta forma porque "as árvores do pântano são más, e algumas delas não são mais árvores". As palavras de PúkPúk me lembraram de meu sonho, e contei a ele que havia visto o terrível visitando bem próximo de nós. Ele me contou então que já sabia da proximidade do vilão, e que devíamos nos apressar. Contei também sobre o enorme elemental que havia aparecido em meio às chamas do colossal barco no qual caímos neste mundo, e em resposta ele apenas sorriu e disse que os senhores do fogo tem uma grande fome por esta floresta, pois quase todo o combustível deste mundo já foi queimado e eles precisam de mais, sempre mais. Perguntei se havia feito a coisa certa ao deixar para trás o elemental, e ele disse que não fazia parte do Movimento que eu fizesse alguma coisa a respeito. Foi neste momento também que o venerável druída me segredou que, pouco antes de nossos caminhos se separarem, gostaria de conversar comigo e me dar também um presente. Não tive chance de perguntar mais sobre isso, mas aguardo agora, enquanto as horas passam, pela vinda de PúkPúk para conversarmos, o que significa que em breve nossos caminhos irão se separar.

Nos reunimos então em semicírculo à volta da majestosa árvore que seria o portão de entrada em nossa caminhada pelas árvores. Greyfeather, cujo corpo cresce a cada dia sem perder a graça natural aquilina embora seja hoje já maior do que o de uma harpía, pousou sobre as costas do Ogrillion, que neste momento já estava também carregado com quatro enormes cabaças de água que nos manteriam hidratados em nossa caminhada vindoura. E foi então que demos as mãos e, pelos dons do venerável druída PúkPúk vencemos os mais de trezentos metros de despenhadeiro em um estalar de dedos. Foi uma experiência impressionante e desorientadora, e levei vários momentos para conseguir retomar o equilíbrio. Quando por fim aqueles que estavam desacostumados com esta forma de viagem se reestabeleceram, começamos nossa caminhada através da savana, rumo ao oriente.


Uma Longa Caminhada

A vegetação abaixo do platô é bem mais esparsa, uma espécie de savana, e o ar é seco e empoeirado. Se antes eram as árvores que toldavam nossa vista do horizonte, aqui é a poeira que nos mergulha em um mundo mesclado de tons arenosos salpicados aqui e ali com o verde escuro e resiliente das árvores. Caminhamos em fila pela vegetação de árvores retorcidas de casca grossa, conversando pouco. O venerável druída nos deu uma fruta muito suculenta, mas exatamente algo como um gomo de uma enorme romã, para comermos. Disse que isso nos protegeria do sol, e de fato, apesar do sol escaldante, conseguimos caminhar bastante.

Em uma ou outra ocasião tentei conversar com o Ogrillion que caminhava logo atrás de mim, mas sua atenção parece cada dia mais drenada pelo amuleto que traz no pescoço e pelo livro que lê todas as noites. É como se as magias arcanas com as quais está infundido estivessem roubando sua atenção, sua presença, sua percepção e, temo, seu bom senso. Tentei avisá-lo sobre os riscos de bolir com magias arcanas poderosas e desconhecidas, principalmente quando não se é um estudioso delas. Mas ele parece não dar ouvidos. Mais do que isso, mal parece me ouvir. Certamente o medalhão o está concedendo diversos poderes -- ele agora começa a falar línguas que nunca antes falara de um momento para o outro, e tem uma luz diferente nos olhos e uma vibração diferente e estranha no corpo -- mas tenho muito receio do preço que ele terá que pagar por isso e, pior ainda, pela completa falta de consciência dele a respeito disso. Temo que em breve tenhamos que agir para evitar um mal maior.

Quando paramos para acampar depois de um longo dia de caminhada, instruí Greyfeather a ajudar os elfos na vigilância do acampamento e me deitei para dormir. Qual não foi a minha supresa quando, por mais que passassem as horas, o sono não vinha. Pelo contrário, sentia-me completamente descansado, como se não tivesse ficado cansado mesmo depois de caminhar tantas milhas. Cochilei algumas vezes, um sono breve, leve e sem sonhos, e pouco depois sempre me via acordado olhando para as estrelas e imerso em pensamentos. Quando, com os primeiros raios de sol, nos preparamos para levantar acampamento, senti muita fome. Mais do que de costume, e a saciei alegremente com a comida que nos foi oferecida por PúkPúk. Foi o primeiro momento em que realmente sentí que meu corpo está sendo transformado pelo manto que se enraíza em minhas costas.


O Perigo Vem do Céu

Caminhamos um bocado neste segundo dia de viagem. Em certo momento, chegamos a um ponto em que a vegetação se tornava mais esparsa e sinistra, e em uma enorme árvore morta se via pregado um urubú morto atado aos galhos. Um claro símbolo druídico que estávamos adentrando terras perigosas, onde mesmo os fortes que vivem da morte correm perigo. PúkPúk nos explicou que nesta região vivem criaturas que se alimentam de vida e de almas para poder viver. Criaturas que estão vivas, porém se alimentam de almas, como os mortos que não descansam. Disse também, apenas para mim, que em breve iremos nos encontrar com um amigo dele, e que então ele deseja conversar conosco para que então nossos caminhos se separem e sigamos viagem na companhia deste novo guia. O pensamento de que PúkPúk vai nos deixar me deixa intranquilo. Sua presença ao mesmo tempo paternal e tutoral me dá segurança, mas já podia entrever que o Movimento separaria nossos caminhos em breve. Era como tinha que ser.

Seguimos viagem mais um pouco, até que o perigo espreitou do céu e se precipitou sobre nós na forma de um enorme lagarto verde, cujas escamas pareciam mudar de cor para se misturar com as cores do céu. Mais terrível que sua cabeça reptiliana e suas garras, ou que suas enormes asas coriáceas, era o grande e peçonhento ferrão em seu rabo. Só o vimos quando ele já estava sobre nós, e fomos atacados completamente de surpresa. A besta voadora atacou Grugik, e o feriu com seu ferrão, apenas para continuar voando. Estava claro que iria nos atacar de rasante em rasante e, se não fôssemos capazes de espantá-la ou matá-la, seríamos nós a morrer.

Me puz a recitar de improviso uma poesia inspiradora, enquanto Leishtar disparava flechas contra a besta voadora e o resto do grupo se preparava para o combate. E são com estes versos que narro o combate que, por fim, vencemos quando a elfa, em total porém oportuno desrespeito por nossas admoestações, teceu com suas magias arcanas colunas de chamas para afugentar a criatura. Seguem os versos, da forma que minha memória se recorda deles...

seguiam viagem os caminhantes,
seguindo o movimento,
quando o perigo veio do céu
interrompendo-lhes o intento

nao temei, nobres viajantes,
o perigo que vem do céu!
se suas asas sao enormes,
nossa coragem é como o mel

a besta verde volteia no céu,
chovendo sobre nós com perigo.
mas nada temos a temer,
pois o destino é nosso amigo

as flechas élficas certeiras
ferem a besta que volteia.
com a lança empunhada para o céu
espero pela carga traiçoeira.

Grugik empunha seu montante,
rugindo contra a besta que mergulha.
se cruzam os corpos enormes
e o desfecho nao me orgulha.

Mas é assim a batalha, é movimento,
o sangue jorra de ambos os lados,
E apenas a coragem nos salva
de corrermos todos desesperados.

A besta verde voa ligeira,
segura de sua vitória,
mas é da noite que surge o dia
e assim será a história.

Dedos ágeis tecem magias,
disparando chamas contra o ar,
e a certeza da besta se esvai.
sabe que no fim nao vai triunfar.

Assustada, a besta bate em retirada,
Certa de que nao poderia vencer.
E por fim sabemos agora
Que mais um dia iremos viver.


Após o combate, que drenou as forças e o ânimo do grupo, decidimos que não continuaríamos a viagem naquele momento. Melhor seria agora montar acampamento para almoçar e descansar. Grugik, o ogrillion, ficou um bocado ferido pelo terrível ferrão, e o veneno da criatura em seus ferimentos era motivo de preocupação. O venerável druida PúkPúk usou de seus dons para neutralizar o veneno que já corria nas veias do volumoso guerreiro, e que poderia terminar por matá-lo. Quando por fim respiramos aliviados, o venerável druida PúkPúk criticou severamente a elfa por ter se utilizado de magias arcanas. Conversei com ele, tentando apaziguá-lo, e ele me disse que quando partisse, a elfa seria responsabilidade minha, e que seus atos pesariam sobre mim. Completou também que foi apenas por causa de minha intercessão que ela continuava viva, não tendo sido comida pelos halflings da primeira aldeia. Conversei com a elfa, e expliquei da melhor forma que pude a situação. Embora esteja completamente convencido de que a magia arcana destruiu e está matando os últimos resquícios de vida deste mundo, ainda considero difícil comunicar isso a um mago de meu mundo. De qualquer forma, deixei bastante claro que mesmo que ela consiga tecer magias arcanas sem destruir visivelmente o ambiente, ela deve evitá-lo ao máximo. Mais do que isso, falei para ela que se ela sucumbisse à tentação de começar a sua magia de forma a destruir a pouca vida que resta neste mundo, seria meu dever impedí-la. Foi difícil falar isso para alguém que tenho como companheira de viagens, e a quem confio também a minha vida de alguma forma, mas era o meu dever. Todo homem é livre, contanto que saiba cumprir os seus deveres e defender sua liberdade. Eu faço a minha parte.

Depois disso, preparamos um rápido almoço, mas percebi que não sentia fome. Era como se o manto estivesse me provendo forças e alimento, em troca do meu sangue, ou ao menos assim me parece. Ainda não penso entender o que este manto é, e que efeitos tem sobre mim.

Então (...)"

(a narrativa termina aqui, no meio da 4a folha, provavelmente interrompida pela chegada de PúkPúk para conversar com Duirfell...)

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Por quê Yirddyn Duirfel escrevia memórias?

"Yirrdyn Duirfell foi um bardo antes de ser um druída. De fato, antes de ser um bardo, Yirddyn já era uma alma inquieta que precisava se expressar, e foi isso, e a sede de viajar e conhecer o mundo, que o tornaram um bardo viajante no início de sua juventude. Já naqueles tempos Yirrdyn mantinha um diário, que se perdeu em algum momento entre suas caminhadas e os ritos de passagem que o tornaram um druida. Desde então, Duirfell não havia deitado uma letra sequer no papel. Mas quando suas viagens o trouxeram para longe de Sylvia e de seu mundo, a enorme inquietude que tomou sua alma demandou que ele pudesse estravazar seus pensamentos e sentimentos de alguma forma -- e expor isso ao grupo de quase desconhecidos com o qual viaja estava fora de cogitação. Foi então que, apesar das proibições que demandam que druídas não escrevam memórias ou relatem por escrito qualquer coisa que seja, Duirfell começou a manter anotações sobre suas aventuras. É claro que ele as mantém em segurança, da melhor forma que pode, e só se deixa a escrever quando está sozinho e longe do resto do grupo, mas é mais claro ainda que se estas memórias vazarem ele estará em apuros -- não apenas pelo tanto que elas revelam sobre ele e sobre suas andanças, mas também pois o ato de escrever é considerado tabu, ao menos entre os druidas do mundo onde ele veio. Mesmo assim, correndo riscos, Duirfell escreve. É a única forma que ele tem para lidar com os acontecimentos de sua vida. É também, de certa forma, a evidência da chama bárdica que nunca se apagou em seu coração, mesmo depois dos ritos de passagem druídicos."

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15 de fev. de 2009

Memórias de Yirddyn Duirfell

(Memórias do druida Yirddyn Duirfell, rascunhadas em uma noite sob as enormes árvores da última floresta de Athas...)

Depois de uma longa viagem por esta terra que não me conhece, pela primeira vez a terra e eu nos encontramos. O venerável PúkPúk, o druida do povoado halfling que encontramos ao cair em uma floresta desta terra violentada, me disse palavras sábias que me permitiram entrar em contato com esta terra. Pela primeira vez que deixei o meu mundo, eu sinto paz.

Deitei todas as minhas vestimentas e equipamentos, que neste momento parecem igualmente estrangeiros para mim, em uma pilha ao pé daquela centenária senhora árvore, e me deitei vestido apenas com o ar deste mundo quente, agasalhado pelas últimas folhas que restam a este lugar, para fitar o céu estrangeiro que aos poucos também se torna meu céu.

A noite está quente, mas não tão quente quanto os dias deste lugar abrasado pelo sol flamejante e negro. Fecho os olhos para ouvir os primos distantes, animais deste lugar, mas quase não consigo ouví-los. Assim como os halflings que nos recepcionaram, e quase tudo mais nesta floresta, os animais deste lugar caminham em cuidadoso silêncio. Assim nós também caminhamos por todo o dia.

A lembrança de dias antigos, dias de outra vida, de quando eu caminhava com a companhia de bardos e tespianos pelos bosques das terras onde nascí em busca de dinheiro, aventura e diversão, me vem à mente. Era mesmo outra vida, a vida de outro Yirddyn, que se conecta a este apenas por uma pergunta que ainda não encontrou resposta: por onde caminhará Iorwenn o druida, meu pai?

As lembranças dos dias antigos são varridas pelas memórias muito mais vivas dos momentos que vivi desde que cheguei a esta terra estrangeira. Esta é a minha vida agora. Mas dos velhos tempos ficou a sensação de que as histórias que vivemos precisam ser contadas. Talvez seja por isso que eu esteja aqui, gastando a última tinta que me resta, nas últimas duas folhas de papel meio roto que carreguei em minha mochila, escrevendo estes pensamentos que me afastam da minha busca de comunhão com a vida deste lugar.



Tentei rascunhar um dos halflings athasianos que encontrei no dia de ontem. É um em tantos, e talvez seja todos eles misturados em algumas linhas mal traçadas na luz suave desta mata. Halflings que nos foram tão hostís quando primeiro os encontramos, pouco depois da queda do navio voador que nos trouxe até aqui. Halflings que nos mandaram de volta em uma missão que, para meus companheiros de viagem, era indesejada e suicida. Halflings que vi lutar e morrer em embate contra estranhos e enfurecidos macacos gigantescos com dois pares de braços. Halflings cujo sangue e vísceras tive em minhas mãos em meio ao calor do combate, quando lutava para estancar sangramentos e endireitar ossos partidos em meio à batalha desesperada. Nossos algozes transformados em canhestros amigos nesta terra estranha. Halflings que tem, assim como aprendí a ter, em PúkPúk um guia e um exemplo. PúkPúk, o venerável druída que mesmo sendo tão estrangeiro e distante para mim, me soa tão próximo quanto Haim. Tão próximo quanto eu queria meu pai. PúkPúk, assim como o seu povo, é muito maior do que sua estatura e aparência, e estas mal traçadas linhas, podem sugerir.

A sombra do bardo cronista que mora dentro da clareira de carvalho de minha alma de druída me diz que preciso recapitular os últimos dias...


O Paraíso Silvestre

Quando conhecí Sylvia, parecia ter encontrado finalmente a última peça que faltava para completar o mosaico daquilo que havia me tornado. É certo, como é certo que tudo flui nos ciclos do pai Silvanus, que eu estava enganado. A última peça é sempre o movimento que faz com que as peças deixem de se encaixar.

Quando deixei meus companheiros para me reencontrar com a mulher, tomando a forma de águia para vencer as muitas milhas que me separavam, experimentei também o sentimento da liberdade de um pássaro. Quando cheguei à clareira onde Sylvia fixara suas raízes, à beira do belo lago de águas que curam e refrescam, me sentí mais vivo, e mais conectado com tudo que é vivo, do que jamais havia sentido desde que renascera do útero de terra que me engoliu menino e me pariu druida.

A força das lembranças dos dias que passei à beira daquele lago, naquele paraíso silvestre que era uno com Sylvia, e do qual ela fazia parte, me impede de transformar em palavras o que vivi naqueles dias. Daqueles dias dos quais me restam as lembranças que são a luz das horas escuras e a folha verde tripartida que nunca morre que agora repousa em meu peito, não irei falar.



Não sei também colocar em palavras ainda os motivos que me fizeram partir de lá, deixando Sylvia e meu paraíso silvestre para nunca mais voltar. Talvez seja a mesma sombra que me faz escrever. Talvez tenha sido o meu dever de druida. Não são nossas palavras, mas são nossas pernas, e no meu caso as minhas asas de pássaro, que sustentam a nossa ida. Motivos são apenas coisas humanas. O movimento é maior do que todos eles...

Foi assim que reencontrei meus companheiros, que pretendiam partir para muito longe. Foi assim que começou a viagem que me trouxe até aqui.


Os Primeiros Passos em Outros Planos

Os primeiros passos na interminável escada que nos levava para fora da terra onde nascí foram desconcertantes. Meus olhos se perdiam na imensidão além das escadarias, e meu sentimento era de vazio. Tão vazio quanto aquele lugar.

Caminhamos por tanto tempo que eu não saberia dizer quantas horas, quantos dias, quantos dezdias(1) se passaram. Chegamos por fim a uma enorme plataforma enevoada, onde havia uma multidão de formas e rostos diversos, alguns deles completamente alienígenas. Fomos dalí guiados a um portal. Confesso que minha mente estava tão longe, ou talvez isso seja por conta da estranheza da viagem, que não consigo recordar ao certo. Sei apenas do sentimento de vazio e imensidão que me tomava enquanto caminhava, sem saber ao certo para onde, até chegar ao enorme barco voador que nos levou conduziu à segunda parte de nossa viagem.


O Barco Voador

Era enorme! Talvez uma das maiores estruturas capazes de se mover e construídas por mãos não divinas, creio eu, que já vi até hoje. Seu casco cinzento recortado contra a névoa o fazia parecer uma grande montanha invertida que voava. Em seu seio, carregava gentes estranhas e hostís que falavam uma língua cruel e desconhecida. Me disseram que se chamavam Gitian-Kis, e que eram um povo que um dia já foi humano. Havia também dragões! Eles acompanhavam o barco como enormes e cruéis aves de rapina, suas asas coriáceas vermelhas como o sangue se movendo preguiçosamente no éter...



Naquele barco, cruzamos muitos lugares... as pessoas que encontrei por aqui, e até mesmo meus companheiros, se referem a eles como planos. Planos inferiores, planos superiores... idéias e conceitos que ainda pretendo entender. Sei que viajamos, e viajamos muito e para tão longe que longe deixou de fazer sentido. Fomos além das distâncias.

A viagem foi longe de ser tranquila, embora durante a sua primeira parte creio que o maior perigo que corremos foi pela companhia daqueles que nos conduziam. Os cruéis e alienígenas Gitian-Kis nos tratavam com frieza, e não pude deixar escapar um brilho de maldade e ameaça em seus olhos, refreado apenas pela espécie de contrato no qual estavam envolvidos, e que os forçava a nos levar em segurança a algum lugar que, temo, meus companheiros saibam melhor do que eu qual era. Confesso ter me deixado levar de tal forma, que viajava sem saber para onde, e sem me importar...

Passava minhas horas a olhar para a imensidão além do barco, além dos dragões, além de mim, tentando encontrar um sentido em tudo aquilo... algo no que me segurar para não enlouquecer. Havia outras pessoas que também viajavam no barco, mas eu pouco prestei atenção a elas naquele momento. É engraçado pensar como tudo mudou em tão pouco tempo, a ponto de tê-las agora como companheiros confiáveis em minha jornada rumo ao ainda desconhecido.


Terras de Pesadelo e Destruição

Em certo momento, adentramos um lugar de pesadelo, cuja visão era tão horrível que me arrancou de meu devaneio e me trouxe de volta para o presente! Era um lugar onde a natureza havia sido devastada -- propositalmente!!! -- por forças mágicas de crueldade impensável. Conforme nossa enorme nau se dirigia para o centro desta enorme desolação, deste pesadelo de morte e destruição inimaginável, fui tomado por uma náusea sem tamanho. Pior do que o vazio. Pior do que o sentimento de alienação de minha terra, e de sentir cada vez mais tênue o canto de vento nas folhas que era para mim a voz de Silvanus, pior do que tudo, era estar em meio àquela total desolação. Já havia visto em minha vida lugares em que a vida chora e sofre, e voltei a ver coisas muito piores do que já havia visto até então. Mas nunca havia visto nada tão terrível. E espero nunca mais ver, senão para curar as feridas que parecem incuráveis!

Em meio a esta terrível desolação havia uma cidadela de metal. Um metal que, se metais podem ter tal aparência, era tão cruel quanto a magia que o criara, e que criara toda aquela devastação. Parecia que, mais do que isso, aquele metal era o responsável pela desolação. Um metal mau além da maldade que fez o metal e a guerra e devastou as terras onde nasci. Debaixo da cidadela que flutuava, escorria uma torrente de esgoto e dejetos infinitamente imunda! As fezes da mostruosidade de metal, infinitamente mortíferas, que soterravam toda a vida sob um mante de imundície e morte.

E naquela cidadela terrível, atracamos. Enquanto me apoiava no parapeito do enorme barco, tentando controlar a náusea e a dor, pude ver que embarcávamos bagagens estranhas. Algo que parecia um sarcófago, e que só depois descobrí horrorizado do que se tratava. Talvez tenha sido também aquele momento o primeiro em que realmente notei o Ogrillion que agora viaja conosco.

Mais uma vez, as memórias daqueles momentos se tornam nebulosas para mim. Além da náusea que não me permitia comer ou beber, por vezes me impedia até de respirar, havia também a absurda opressão que havia se apoderado de meu espírito. Senti que se ficasse naquele lugar por mais tempo, morreria, como morreu toda a vida pristina e pura daquele lugar, deixando lugar apenas para as coisas terríveis que lá habitavam!


O Cemitério dos Deuses

Quando partimos, por fim, daquele lugar de pesadelo, voltamos a navegar no éter silencioso e vazio. Não sei quanto tempo mais se passou enquanto eu fitava o horizonte infinito tentando purgar as lembranças daquele pesadelo de minha alma. Minhas tentativas de me conectar com a vida e ouvir novamente a voz de Silvanus em meio àquela loucura foram em vão...

Havia também entre os outros passageiros do enorme barco uma mulher, visivelmente estrangeira, que parecia ser também uma seguidora dos deuses. Se naquele momento tentei falar com ela sem sucesso, creio que, sem que nós soubéssemos, minha iniciativa terminou por salvar sua vida.

Enquanto eu tentava conversar com a seguidora dos deuses, sem sucesso por conta das barreiras representadas pela falta de uma língua comum, o barco começou a se aproximar de um lugar que, tamanha a sua ominosa estranheza, nunca vou esquecer. Eu não sabia então do que se tratava, mas depois vim a descobrir que se tratava de um cemitério de deuses mortos.



As enormes massas de terra flutuavam de um lado e do outro, e acima e... por Silvanus!... flutuavam também abaixo de nós. Nosso enorme barco era pouco mais do que um grão de poeira flutando em meio a gigantescas massas de terra, pedra e mistério. Algumas destas massas eram pequenas e áridas. Outras, recobertas por coisas que eu não conseguia enxergar ou compreender. Ao menos uma delas era repleta de vegetação luxuriante. Aquela paisagem absolutamente impressionante me fez esquecer de tudo mais. Foi a primeira vez que pude ver os corpos de Deuses!

Em meio aos Deuses mortos, soube que estava Ibrandul, aquela que traz a luz para quem está na escuridão. Ibrandul, aquela que guia os perdidos na noite escura de Fâerum! Por Silvanus, Pela Vida! Ibrandul não era uma Deusa Morta! Por quê estaria alí!? Isso não fazia sentido. Eu não podia me mover. Mal podia respirar, enquanto observava os eventos que se desenrolaram depois.

Em meio às gigantescas montanhas que flutuavam, surgiu uma mulher enorme, de proporções indizíveis, que ora parecia nos convidar, ora parecia nos ameaçar. Dizem que era a própria Shar, senhora da Escuridão! Em todas as coisas que vi na minha vida, nunca imaginei que veria estas coisas! Deuses Mortos! Shar aparecendo em sua enorme e escura forma, e desejando a nossa morte e... ainda estarmos vivos! Todas estas coisas ainda fervilhavam em minha alma, e me impediam de encontrar a paz... até esta noite.

Mas os eventos continuaram a se desenrolar de forma absurda, e não havia tempo para pensar em nada do que havia visto ou vivido. Em fuga das longas mãos de Shar, a Escura, o barco manobrava e sacudia terrivelmente. Gitian-Ki e passageiros eram sacudidos e arremessados para fora da embarcação, para se perder no vazio... corpos mortais perdidos como poeira em meio aos corpos dos deuses... e tive que fazer o possível para me segurar ao barco. Tomei a forma do macaco e me agarrei às amarras dos enormes mastros, e fiz o que pude para salvar a seguidora dos deuses e meus companheiros. Por fim, conseguimos nos segurar ao barco, e este passou através de algo que creio ter sido um portal... e então começou a cair.


A Queda

Tão terrível quanto o sacolejar da fuga das mãos de Shar foi a nossa queda, e ao ver o chão que se aproximava a nossa morte parecia cada vez mais certa. Não sei dizer o que passou pela minha cabeça naqueles momentos, mas quando ví que o Ogrillion se agarrava à enorme roda do leme do barco voador que caía, sentí que nossa única esperança era tentar ajudá-lo. Aproveitando da agilidade que a forma de macaco me conferia, me aproximei do leme e fiz o possível, de corpo e espírito, para retomar o controle do barco. Embora nossos esforços não tenham sido em vão, o barco ainda assim caiu pesadamente sobre a floresta...

E foi assim que chegamos a Athas.

Resta-me muito pouco espaço nestas rotas folhas para relatar o que se seguiu. Terei que ser muito breve.

Encontramo-nos, após a queda, com a tribo de halflings liderada pelo venerável PúkPúk. Alguns de meus companheiros escaparam por pouco de ser devorados por nossos anfitriões. Dizem que isso pode ser uma honra. Meus companheiros não pensavam assim. Fomos então enviados para tentar livrar a floresta daquilo que habitava o interior do terrível sarcófago de ferro que era levado pelo barco. O Ogrillion, que viu de perto a criatura, gagueja ao narrar. Em meio a todos os horrores dos últimos dias, fico feliz apenas em saber que conseguimos nos certificar de que aquela criatura foi embora junto com os Gitian-Ki.

Depois da partida dos Gitian-Ki e do sarcófago, um dos dragões que ainda os acompanhava incendiou o anorme barco que estava ainda preso entre as árvores. Nas chamas gigantescas que se seguiram, pudemos entrever um enorme elemental do fogo a regozijar-se. Os elementos tem enorme poder neste lugar! O fogo, acima de todos, e a terra. O ar tem também enorme força, e a água, mesmo escassa e subjugada, tem também enorme poder. Mas a vida ainda resiste... e é a vida que eu devo buscar em minha meditação...

Não há mais espaço para narrar nada. Terei que encontrar mais papel, ou alguma outra coisa, para continuar a escrever minhas memórias. Por hora estamos vivos, e rumamos para outra aldeia de halflings onde o venerável PúkPúk me disse que aprenderíamos muitas coisas, e talvez encontrássemos o caminho para fora deste lugar. Não sei o que pensar sobre isso. Só sei que tudo que tenho agora é a minha missão de servir à Vida, aqui ou em qualquer lugar.




(1): Em Fâerum Ocidental, "dezdias" é um período de dez dias que seria o equivalente mais próximo em uso à semana gregoriana.

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