23 de mar. de 2007

A moral da história.

É possível se contar uma história sem moral? É possível sequer se conceber uma narrativa que seja não moral, ou onde uma personagem possa ser realmente não moral? Se isto for possível, so o é em um Conto da Terra Encantada (e, insisto, a tradução é FaërieTale e não FairyTale) e tratar-se-á de uma das mais fabulosas demonstrações de Sub-Criação* e mesmo Meta-Sub-Criação*.

Estou sendo muito incompreensível?
Então vamos tentar esclarecer as coisas...


Toda moral é um código, uma estruturação, de valores. Valores são afirmações feitas a respeito de idéias, atos, objetos, pessoas e quaisquer elementos que se possa perceber. Quando se diz "o gato é bonito", se está fazendo uma afirmação de valor. Quando se diz "eu estou achando este texto um saco", esta é também uma afirmação de valor. Do mesmo modo, dizer que tal coisa é certa ou errada, ou que tal idéia ou coisa é boa ou ruim, são afirmações de valor (assim como dizer que alguma coisa existe ou mesmo que não-existe). Sobre estas afirmações de valor, de certos e errados e "melhores que" e "piores que", se constrói uma moral. E não é que haja tantas "morais" assim, pois uma grande quantidade de afirmações de valor são tão entranhadas em nossas culturas que nem sequer sabemos que as levamos em nossas cabeças. Logo, podemos discutir se o aborto é "bom" ou "ruim" e, dependendo de nossos valores, este será "moral" ou "imoral" (contrário à moral). Por outro lado, se eu questionar a validade da afirmação de que "esta tela é real" ou mesmo da afirmação de que "você é real", você pode me achar interessante, curioso, completamente maluco ou achar que ando lendo livros demais sobre física quântica, mas dificilmente esta afirmação estará em discussão para você (a não ser que você seja tão maluco ou maluca, ou quântico, quanto eu).

Pois bem, para encurtar uma explicação que pode ser muito longa, a partir de uma estrutura de valores se tece uma moral. Há quem diga que a moral é a própria estrutura de valores, mas isso não importa agora. O que importa é que, uma vez que existe uma ou várias moralidades, dado que existem valores e eles se estruturam sempre de alguma forma, torna-se então possível afirmar que não há nada que não esteja de alguma forma contemplado, seja positiva ou negativamente, pela moralidade. Posto isso, qualquer afirmação (e uma narrativa é construída de afirmações) carrega em seu seio uma enorme dimensão moral.

Se eu digo que "John pegou uma pedra e a jogou em Michael", isso não tem, a princípio, uma implicação moral, não é? não é!? Mas é claro que tem! Logo de cara temos um ato que, dentro de uma estrutura moral, pode ser considerado certo ou errado. Na maior parte das vezes a "observação moral" desta afirmação dependerá, ou poderá ao menos ser modificada, por outras afirmações ligadas e complementares a ela como, por exemplo, "John jogou a pedra pois Michael estava fugindo com sua carteira". Note a quantidade de questões morais (é certo jogar pedras nos outros? é certo jogar pedras em pessoas que tentam roubar suas carteiras? é certo roubar carteiras? um erro justifica o outro? o calor do momento, ou as emoções, justificam um erro? etc...) contidas apenas neste conjunto de duas afirmações. Será possível então escrever uma história não-moral?

Vamos tentar aprofundar um pouco mais esta questão (ou, se estiver cansado ou já estiver convencido de que não é possível escrever uma narrativa não-moral, pode pular para o último parágrafo). Vamos nos esforçar mais para buscar ao menos uma única afirmação não moral. Algo como "a pedra está no chão". Vejam! Uma afirmação sem nenhum conteúdo moral, certo? Não é!? Err... acho que não foi desta vez que conseguimos também. Pode-se dizer que não há a princípio nenhuma questão que "pareça" moral envolvida nesta afirmação. Mas vamos olhar um pouco mais para a pedra e ver se não há aí nenhum valor envolvido. Antes de mais nada, o que é uma pedra? Sem precisar entrar em definições muito complexas, uma pedra é um objeto basicamente não-vivo (ou assim convencionamos acreditar) que e feito de... bem... de algum tipo de rocha. Mas no fundo isso não é uma pedra. Isso é apenas um nome (valor) e uma definição que o conceitua (mais valores) atribuídos àquele objeto. A mesma coisa vale para chão e até para a idéia de "estar" (sim, lá vamos nós para mais Metafísica Qualitativa Pirsiguiana!). Mas o que tem a ver isso com a moral? É aí que está o ponto! Lembram-se de que a moral é uma estruturação de valores? Se o nome é um valor, e eu estou usando naquela afirmação ao menos dois nomes (pedra e chão), além do conceito de estar, então afirmar que a pedra está no chão é uma reiteração (ainda que "au-passant") da "validade" destes nomes e deste conceito enquanto formas de se expressar o fenômeno sobre o qual estou afirmando. Tá muito complexo? Agora que chegamos até aqui, dá para simplificar. Ao dizer "a pedra está no chão" eu estou dizendo que existe uma pedra, e que ela pode ser chamada assim, e que existe um chão, e que ele pode ser chamado assim, e que uma pedra pode estar no chão, a partir do momento que estou afirmando que ela "está no chão". Weeew... que maluquice, duende! Pode ser maluquice, mas são afirmações perfeitamente razoáveis. Eu poderia questionar (e esta seria uma daquelas coisas que parecem inquestionáveis, pois estão incutidas em nossa percepção de mundo, mas que na verdade tanto podem ser questionáveis quanto vem sendo questionadas pela física quântica), por exemplo, que exista tal coisa como uma pedra. É! Eu posso! E agora você não vai ter só que afirmar que a pedra está no chão. Vai ter que me convencer de que há tal coisa como uma pedra para que ela possa estar ali no chão. A mesma coisa vale para o chão. Você afirmou que há um chão (e isso é um valor: "chão existe", uma vez que algo pode estar "no chão"). Agora vai ter que arcar com as consequências. Prove que existem pedras, chão, e, por fim, que uma pedra PODE simplesmente ESTAR no chão. Mas não precisamos discutir nada disso se você quiser apenas afirmar que "a pedra está no chão", assim como afirmar que "John pegou a pedra e a jogou em Michael" ou que "Mary teve seu filho pois considerava um absurdo realizar um aborto". Mas você há de convir agora que estas três afirmações são profundamente carregadas de conteúdo moral (e que eu posso ser um imoral por isso, mas eu posso questioná-las enquanto afirmações de valor que são). E agora podemos, então, concluir que é IMPOSSÍVEL se escrever uma narrativa sem conteúdo moral?

Postas todas estas coisas, temos então que ficar atentos à moral de cada uma de nossas afirmações (e isso não apenas quando estamos escrevendo histórias ou fábulas). Cada afirmação carrega em seu seio uma enorme quantidade de consequências, e se as mesmas passam completamente desapercebidas no cotidiano, o mesmo não se dá quando se está construindo uma narrativa. Cada pequena afirmação utilizada na construção da história diz muito não apenas sobre o mundo que está sendo sub-criado, mas também sobre o olhar que você ora lança sobre ele (e partilha com o leitor). Quando se está escrevendo uma história, seus olhos são os olhos do leitor e seus ouvidos são igualmente partilhados mas, sobretudo, uma parte "a priorística" do seu juízo de valores também acaba sendo emprestada. O leitor pode exercer seu senso crítico a respeito daquilo que consegue enxergar, mas não a respeito daquilo que você já julgou e valorou antes dele. Desta forma é dado ao contador de histórias não apenas moldar um mundo e povoá-lo de personagens e histórias, mas também enfocar todo este ecossistema dinâmico com a luz de seu olhar narrador de forma a dar a ele tal ou qual nuance desejar. Cria-se vilões e heróis (e estes dois entes são elementos feitos de moral da cabeça aos pés, mesmo que não tenham cabeças ou pés), direitos e regras, premiações e punições naturais, e tudo isso pode acontecer por debaixo do tapete vermelho que você estende ao leitor, ou mesmo por debaixo do seu próprio nariz. Quando digo que ao escrever dizemos muito sobre nós mesmos, não estou falando apenas das nossas escolhas temáticas e de histórias, ou das dimensões morais mais aparentes. Estou dizendo que, ao emprestar seus olhos e ouvidos e tudo mais ao leitor, você está emprestando uma parte das janelas da sua alma e, inevitavelmente, das lentes que usa para enxergar o mundo sub-criado ou revelado a você. Estas são coisas que se deve ter em mente ao escrever. Toda história tem uma moral ou, mais do que isso, toda história é construída inteiramente de valores, moral e (com um pouco de imaginação, arte e fantasia por parte do contador) de um bocado de magia. É necessário se ter muita responsabilidade e atenção quando se utiliza a magia da criação...



Tudo isso me faz pensar que, na verdade, tudo neste universo é submetido à moral (ou às moralidades várias). Mas disso qualquer leitor de Pirsig já sabe...

Ou vocês também querem que eu explique? :)


Acho melhor voltar à minha fábula.
Espero que este enorme post sirva a alguém.

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* Por mais que eu tente, nunca consegui achar um link ou texto sequer que explique estes conceitos de forma razoável. Por fim acabei escrevendo um eu mesmo, que pode ser lido seguindo a palavra hyperlinkada, ou clicando aqui.

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4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

As palavras, além de muita moral, são carregadas de imenso poder, para muitos até desconhecido: o afamado "poder das palavras"! E lendo o que dissestes e lembrando de outras experiências, me faz pensar que é a mais perfeita gama tramada pelo homem essa tão real imensa e infindável(?) simbologia que era considerada, talvez nem tanto quanto hoje, mui poderosa pelos nossos antepassados, os quais atribuíam poderes mágicos e milagrosos à elas - que o mais surpreendente era que funcionava! - e que me faz tomar conhecimento de quão limitados e inexperientes somos nós perante esse universo...e por aí vai...há há há!
Caititi

4/25/2007 05:08:00 PM  
Blogger Daniel Duende said...

é... as palavras possuem mesmo muito poder mágico, assim como a imaginação...

quanto à moral, que é ligada à evolução... ela está em tudo. :)

Abraços do Verde.

4/26/2007 05:31:00 PM  
Blogger Salomão said...

Como dizia o Muçum: "cacildis..."

Caro blogueiro onde cai totalmente por acidênte... Como disse que nunca viu tais idéias antes, vou te dar uma dica: você pode encontrar parte destes conceitos em Ludwig Wittgenstein e também pode usar a simples afirmativa dos estudiosos do conhecimento que definem o mesmo como:"conhecimento é crença justificada", sem a necessidade de recorrer à física quantica.
No mais achei seu post muito interessante. Espero encontrar também por aqui uma fábula, e não somente a dissecação destas.
Abs.
Carlos - companheiro na arte de contar estórias (que o reforma da língua nos roubou, mas ainda vivem).

7/24/2007 12:47:00 PM  
Blogger Daniel Duende said...

Olá meu caro colega contador de estórias,

já havia ouvido falar certa vez que Wittgenstein tinha idéias com as quais me identificaria, mas não me haviam especificado do que se tratavam na ocasião.

Em meio às correrias, acabei esquecendo-me de verificar. Vou procurar as referências sobre o pensamento do caro cara Wittgenstein agora (de quem meu velho professor de Psicologia da Religião era um grande fã também).

Abraços do Verde.
(e seja sempre bem vindo)

7/24/2007 05:14:00 PM  

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